Por Milton Rondó Filho – IFZ | 03/08/2023
“Para aquele homem sem futuro, a terra era tão rara quanto o ouro que diziam existir a caminho da serra. Era ainda pior: o ouro não se via em todo canto; o metal não habitava o mundo de uma maneira tão ostensiva quanto a terra. Para a certeza da desgraça de sua gente, a terra não apenas estava em todo canto, em todo lugar; a terra não apenas estava em todo canto, em todo lugar; a terra era o canto, era o lugar, e sem este chão não haveria vida para ninguém. Dos pássaros às árvores. Dos ricos aos pobres. Nem mesmo os montes se sustentariam em pé, e os rios morreriam antes mesmo de correr…Aparecido blasfemou aos Céus por conhecer um mundo imenso e dividido entre pouca gente…À gente mestiça, índia e negra, restavam as sobras, era o que a mãe dizia…”.
Itamar Vieira Junior, em “Salvar o fogo”.
O Dia Internacional da Agricultura Familiar, 25 de julho, encerra muitas verdades, mas também muitos apagamentos e injustiças.
A data foi estabelecida pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), em 2014, por iniciativa, inicialmente, do Brasil, mas logo acolhida por toda a América Latina e o Caribe e, finalmente, referendada pelo conjunto de países integrantes da FAO (em torno de 200).
Para isso, muito contribuiu ser o Diretor-Geral da FAO, à época, o brasileiro José Graziano da Silva.
Nos dois mandatos do presidente Lula (2003 a 2010) e da presidenta Dilma (2011 a 2016), a agricultura familiar brasileira ocupou a vanguarda das negociações internacionais que lhe diziam respeito, conferindo aos agricultores e agricultoras familiares uma visibilidade inédita; sua saída do apagamento histórico, ao qual fora injustamente relegada, embora responsável por 70% dos alimentos que chegam às nossas mesas, não apenas no Brasil, mas também na média de todos os demais países do mundo.
Em rápida retrospectiva, vale notar que o 25 de julho fora inicialmente estabelecido no Brasil como Dia do Agricultor. A data coincide com a chegada dos primeiros imigrantes alemães ao Vale do Rio dos Sinos, à atual São Leopoldo, em 25 de julho de 1824, encerrando comemorações e contradições.
A maior das comemorações: que a data, motivada pela corajosa e frutuosa imigração alemã ao Rio Grande do Sul, tornar-se-ia, dois séculos depois, um marco mundial da operosidade europeia em terras gaúchas, brasileiras, latino-americanas e caribenhas, projetando-se a todo o mundo, e tornando-se o marco internacional de reconhecimento a agricultores e agricultoras familiares, que, de fato, nutrem o mundo.
Porém, como toda ação humana, a contradição não lhe é estranha.
No próprio Brasil, a maioria da população é, de fato, imigrante. Entretanto, alguns, os europeus, vieram por vontade própria, ainda que expulsos de seus países de origem pela situação de empobrecimento a que foram reduzidos pelas oligarquias europeias. Outros, a imensa maioria, africana, foi sequestrada e trazida sob o jugo da escravidão, em número de 5 milhões de homens, mulheres e crianças, sob grilhões…
Portanto, a data, já desse ponto de vista, encerra reconhecimento, justo, e apagamento, injusto, inclusive porque atualmente mais de 50% da população brasileira é afrodescendente.
Pior, o branco senhor de escravizados faria aprovar a Lei de Terras de 1850, pela qual os escravizados alforriados só poderiam aceder à terra por meio da aquisição dela, virtualmente impossível, pois a própria condição de escravizados não lhes outorgava qualquer assalariamento. Destarte, foram condenados à virtual escravidão, “ad infinitum”, uma vez que a paga, para os alforriados, era a mera subsistência, em condições análogas à antiga escravidão.
Apenas em 2016, um século e meio depois daquela injusta, ilegal e ilegítima legislação, uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 258-2016) seria apresentada, visando a tornar o direito à terra e à água direito humano, positivado no artigo sexto da Constituição Federal, ao lado dos demais direitos humanos ali garantidos.
Evidentemente, o atual presidente da Câmara dos Deputados, cujos subordinados aparecem cada vez mais envolvidos em tenebrosos casos de corrupção, recusa- se a colocar a PEC em votação, o que, convenhamos, não deixa de fazer sentido, para ele…
Mas, sem acesso, aos meios de produção, notadamente à terra, como se podem garantir os demais direitos, como o direito à alimentação, à saúde e todos os demais inscritos naquele artigo sexto da Constituição, que, por serem direitos humanos, deveriam ser protegidos, promovidos e providos pelo Estado?
Ao lado disso, convém notar que o dia era comemorado, até 2014, apenas no masculino: Dia do Agricultor Familiar; o que leva a outro apagamento: de gênero, sendo as mulheres a maioria da população brasileira e de trabalhadores na agricultura familiar (em torno de 70% deles), não apenas no Brasil, mas também na média internacional.
Demais, convém lembrar que, embora a mais valia seja gerada no campo, ela é incorporada nas etapas da distribuição, que, de fato, recebem a parcela maior dos lucros, incorrendo em riscos incontavelmente menores do que os da agricultura.
Em outro verso, as escolas de agronomia pouco ou nada tratam dessa etapa da comercialização. Isso impede uma visão ampla de toda a cadeia alimentar e limita as possibilidades de sua correção. Involuntariamente, contribuem para o abandono acelerado do campo por parte dos jovens agricultores e agricultoras, que, com razão, creem que estão nas cidades as melhores oportunidades de vida e de acesso à riqueza, gerada no campo.
Reverter essas injustiças será a melhor forma de comemorar o Dia das Agricultoras e dos Agricultores Familiares, hoje e sempre.
Milton Rondó Filho é Diplomata, aposentado e membro do Instituto Fome Zero