Ganho de quem está na base da pirâmide foi de 15,4% desde 2019. Já quem está no topo teve perda de 0,6%. Reajuste do mínimo acima da inflação e Bolsa Família estão entre as razões
Por Cássia Almeida e Mayra Castro no O Globo | 29/10/2023
RIO DE JANEIRO | O mercado de trabalho brasileiro ficou menos desigual após a pandemia. O salário médio na camada mais pobre da população, os 25% que ganham menos, subiu 15,4% frente a 2019. Retomada dos serviços, reajuste do salário mínimo acima da inflação após três anos e expansão de transferências de programas sociais como o Bolsa Família contribuíram para a valorização do trabalho não qualificado, aponta o economista Daniel Duque, da FGV.
Segundo o estudo dele que constatou o movimento, na outra ponta, os 25% que ganham mais viveram situação inversa. Houve queda real de 0,6% no salário médio desde 2019, pouco antes do início da pandemia. Voltou a subir este ano em relação a 2022, mas bem menos que na base da pirâmide.
— Na pandemia, houve uma redução muito importante da força de trabalho menos qualificada. Na retomada, a falta de trabalhadores em determinadas áreas acabou causando uma pressão salarial. Com isso, houve melhora na distribuição do rendimento do trabalho, aumentando bem mais os salários nos menores estratos de renda — explica Duque.
Bruno Imaizumi, economista da LCA Consultores, atribui esse comportamento à retomada do trabalho híbrido e presencial, que voltou a ocupar os centros urbanos e a puxar o setor de serviços. Pelos dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho, houve geração de vagas principalmente em manutenção, portaria, limpeza, serviços de apoio aos escritórios e segurança privada.
Além de concentrar a geração de empregos formais, essas ocupações estão pagando mais. O aumento dos benefícios sociais também eleva o preço desse trabalho pouco qualificado.
Já no andar de cima, que ficou mais protegido do desemprego durante a pandemia, a redução na renda média tem uma explicação mais estrutural, na opinião de Imaizumi. Aumentou a oferta de profissionais com nível superior. No segundo trimestre de 2012, os trabalhadores com ensino superior representavam 14,1% do total de ocupados. Em 2023, essa parcela subiu para 23,1%.
Prêmio para quem tem diploma
O prêmio para quem tem diploma universitário continua alto, mas a distância dos menos qualificados diminuiu nesse período. No segundo trimestre de 2023, essa parcela dos trabalhadores ganhava 163% a mais que um com ensino médio completo. Há dez anos, ganhava 178% mais.
— Sem entrar no mérito da qualidade do ensino, a população ocupada está mais escolarizada — diz o economista.
Duque lembra que entre os que ganham mais há uma parte relevante de servidores públicos, que mantiveram o emprego na pandemia, mas tiveram perdas significativas ao longo dos últimos anos sem reajuste. O funcionalismo federal estava sem aumento desde 2016. Só neste ano o governo federal fez uma recomposição salarial de 9%.
Marcella Flores, de 46 anos, formada em Geografia e professora da rede estadual de ensino do Rio desde 2005, não tem reajuste acima da inflação há oito anos. Ela conta que, em 2022, nem teve a reposição inflacionária na remuneração de pouco mais de dois salários mínimos por 18 horas semanais:
— Esperava estar ganhando mais agora, ainda mais com a lei do piso (para o magistério). Todo mundo esperou que fosse ter realmente uma maior valorização da profissão. Mas, como o plano de cargos não vem sendo respeitado, meu salário está R$ 1.300 menor do que deveria ser.
Serviços em alta
Marcella se queixa de a categoria ficar para trás com o argumento recorrente de que há muitos professores e que um aumento linear significativo não deixaria recursos suficientes para pagar aposentados. A perda de poder de compra mudou hábitos da professora e de sua família.
— A gente costumava viajar sempre, mas tivemos que cortar. Vejo nos grupos de que participo que há professores com dificuldades, principalmente os aposentados — conta.
Fabio Bentes, economista da Confederação Nacional do Comércio (CNC), diz que a explicação para o ganho de renda dos menos qualificados está na arrancada do setor de serviços.
O desempenho desse segmento já está 12% acima da pandemia, enquanto a indústria, que paga salários mais altos, ainda está abaixo do patamar de fevereiro de 2020. O comércio também melhorou, mas bem menos. Está 3,9% maior que no início da pandemia, em 2020.
— De longe foi o setor de serviços o que mais se recuperou no pós-pandemia — aponta Bentes.
Média salarial de admissão
E isso se refletiu nos salários dos empregados com carteira assinada. Dos analfabetos até os que terminaram o ensino médio, há aumento real na média salarial de admissão. A partir do ensino superior, os ganhos começam a cair.
— Há uma mudança no padrão de remuneração dos trabalhadores por corte de qualificação. Quem está recebendo aumento de renda maior são os menos qualificados — diz Bentes.
Essa mudança aparece também na distância de ganhos por escolaridade. Em 2021, quem tinha curso superior ganhava 2,46 vezes mais do que quem tinha completado o ensino médio. Este ano, a diferença caiu para 2,15 no mercado formal de trabalho.
— Estamos vendo alguma convergência salarial, muito lenta é verdade, mas o ritmo de reajuste dos trabalhadores menos qualificados está aumentando. Aquela disparidade nos anos 1970, 1980 e 1990 está se tornando menor no mercado de trabalho.
Sanderson Gomes de Souza, de 52 anos, que perdeu o emprego numa empresa de ônibus, ainda não conseguiu um novo registro em carteira, mas passou a contar com a renda da venda de calçados em frente à Central do Brasil, no Rio. O camelô diz que o movimento ainda não é o mesmo de antes da pandemia, mas já espera um Natal melhor este ano.
Distância regional diminui
A conjuntura fez reduzir inclusive a desigualdade regional. A renda do trabalhador de São Paulo era 1,5 vez a média dos nordestinos em 2021. Caiu para 1,3 em 2023.
Uma análise da geração de vagas no país mostra como a demanda por trabalho menos qualificado cresceu neste ano. Estudo de Bentes, da CNC, mostra que foram contratados 257,6 mil vendedores e demonstradores de lojas, 188,4 mil trabalhadores de manutenção de prédios, 119 mil ajudantes de obras e 85 mil garçons e outros empregados em restaurantes e lanchonetes nos últimos 12 meses. Profissionais com ensino médio ou incompleto ocuparam 96% dos novos empregos no período.
Essa redução da desigualdade deve continuar, segundo Duque, mas num ritmo mais lento. A mudança na composição do mercado de trabalho, com trabalhadores mais instruídos vai se manter, reduzindo a participação dos menos escolarizados. No curto prazo, ele vê situação melhor:
— Há recomposição salarial dos servidores, a inflação mais baixa facilita aumentos salariais e a educação tende a reduzir os prêmios salariais.
*Estagiária sob supervisão de Cássia Almeida
Publicado no O Globo
https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2023/10/29/salario-dos-mais-ricos-cai-e-dos-mais-pobres-sobe-no-pos-pandemia-mostra-estudo.ghtml