Por Thiago Lima*, Nádia Aun** e Mateus Ribeiro Silva*** no Brasil de Fato | 09/12/2025
Realizar a Conferência das Partes (COP), em Belém (PA), tem muitos significados. O mais chamativo, sem dúvida, foi fazer o evento na Amazônia, dando um forte destaque às questões da preservação e recuperação das florestas. Além disso, trazer a COP para o Brasil constituiu outra oportunidade: a de tentar vincular a questão do clima à alimentação, já que o combate à fome é uma alta prioridade da política externa do governo Lula e o país acumula grandes êxitos nacionais e internacionais nesse setor. Mas, por que isso é importante?
Não há mais dúvida de que os sistemas alimentares são responsáveis por cerca de 30% dos efeitos que causam as mudanças climáticas. Também são grandes responsáveis pelo uso da água e pela perda da biodiversidade. Por um lado, isso tem conexão com os padrões gerais de dietas que têm levado ao aumento de adoecimentos por doenças como diabetes e hipertensão, e, por outro, com estruturas de produção e distribuição que permitem a existência de excesso de oferta de alimentos enquanto há pessoas famintas: mais de 700 milhões de pessoas estão subnutridas e 3 bilhões não têm dinheiro para adquirir uma dieta saudável.
Duas obras recentes são muito importantes para entender os vínculos entre fome, comida e clima. O relatório intitulado Healthy, Sustainable, and Just Food Systems (Sistemas Alimentares Justos, Sustentáveis e Saudáveis, em tradução livre) da EAT Lancet Commission traz a noção de Dieta Planetária Saudável e afirma que a saúde do planeta depende da saúde humana. Isso é um problema porque os padrões alimentares e de fome atuais estão empurrando a humanidade para uma condição cada vez mais insalubre, em meio a um contexto de extrema desigualdade.
Segundo o relatório, apenas 1% da população mundial vive no que denominam “espaço seguro e justo”, no qual os padrões alimentares não transgridem as fronteiras ecológicas do planeta. Simultaneamente, a dieta dos 30% mais ricos da população global é responsável por 70% dos impactos agroalimentares sobre o clima. Já o livro Caminhos para a Transição do Sistema Agroalimentar, organizado por Ricardo Abramovay e Arilson Favareto e lançado durante a COP30, em Belém, trata de forma crítica a monotonia do sistema agroalimentar em suas três dimensões: produção, processamento e distribuição e consumo. A obra afirma que a transição agroalimentar tem um papel fundamental no combate às mudanças climáticas.
Diante desse acúmulo de conhecimento após mais de 30 anos de discussões da Convenção Quadro da ONU sobre o Clima (UNFCCC), e dez anos do Acordo de Paris, chegamos, finalmente, a um consenso sobre a importância da segurança alimentar e nutricional no enfrentamento das mudanças climáticas?
Fome e alimentação nos textos do clima
Pode-se dizer que avançamos bem menos do que seria desejável, mas não ficamos parados. Também não houve retrocesso, mesmo diante da gravíssima crise atual do multilateralismo. Ecoando a ministra Marina Silva, “progredimos, ainda que modestamente”. O problema é que esse ritmo de avanço não é suficiente. Nos diversos textos negociados, há poucas menções a alimentos, alimentação, sistema alimentar e à fome.
Entre os avanços modestos está a Declaração de Belém sobre Fome, Pobreza e Ação Climática Centrada nas Pessoas, assinada por 43 países¹, em diversos níveis de desenvolvimento, e a União Europeia. Proposta pela Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, a declaração possui cerca de seis páginas e está organizada em quatro sessões: Preâmbulo, os Compromissos Assumidos, os Meios de Implementação e o Monitoramento. Entre os compromissos vale destacar o foco na proteção social de comunidades vulneráveis, bem como o reconhecimento de que elas também são a base para efetivação de uma transição mais justa no que diz respeito ao uso e ocupação do ambiente natural. O apoio à agricultura familiar e de pequena escala surge como outro compromisso dessa declaração, que os posiciona como ator social capaz de operar como agente de resiliência.
A estratégia de implementação dessa declaração se baseia em encorajar os países a incluir explicitamente esses compromissos nas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), nos Planos Nacionais de Adaptação, nas Estratégias de Longo Prazo, nos Programas de Ação Nacional para o Combate à Desertificação, nas Abordagens Programáticas para Perdas e Danos, e nos Planos e Estratégias Nacionais de Biodiversidade, além de solicitar que haja um incremento do financiamento climático de US$ 300 bilhões anuais para US$ 1,3 trilhão para os países em desenvolvimento até 2035.
As Ações Climáticas Centradas nas Pessoas pretendem aumentar a cobertura da proteção social em 2% ao ano nos países com maiores taxas de pobreza, aumentar a capacidade de resposta às crises, aumentar as fontes de financiamento climático para a agricultura em pequena escala, promover o emprego decente e qualificação de pesquisas nas áreas correlatas.
A perspectiva de centralidade nas pessoas é bem-vinda, pois muitas vezes às discussões climáticas se concentram em fatores econômicos (emissão de gases do efeito estufa) e ambientais (eventos climáticos extremos), paradoxalmente relegando a agência das pessoas a segundo plano.
Nota-se, portanto, que o contexto de persistência da pobreza, da insegurança alimentar, da dificuldade do acesso à água, da piora dos indicadores de saúde – com destaque para a obesidade torna-se uma pandemia – e do aumento da mortalidade e das desigualdades sociais, e do agravamento do uso da fome como estratégia de guerra sensibiliza os signatários da Declaração de Belém. Por essas razões, ela propõe que a garantia da proteção social seja uma ferramenta de resiliência frente às mudanças climáticas, tendo os sistemas alimentares como protagonistas dessa articulação.
Embora o documento avance no sentido de incluir a proteção social como área estratégica para contribuir na mitigação dos efeitos das mudanças climáticas, e de reconhecer e apoiar a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, ela ainda conta com apenas 44 entidades signatárias, reforçando a posição marginal dos sistemas alimentares no debate político sobre o enfrentamento às mudanças do clima e o silêncio de algumas nações do Sul e do Norte Global diante da injustiça climática.
Para que serve uma declaração?
No mundo das relações internacionais, uma declaração pode parecer apenas um conjunto de palavras sem força de lei. Porém, elas podem funcionar como um marco que ajuda a organizar o debate global. Mesmo sem obrigar ninguém a nada, elas criam uma linguagem comum, registram aquilo que os países estão dispostos a discutir e sinalizam caminhos possíveis para seus signatários. Quanto mais um tema aparece e reaparece nesses textos, mais ele ganha força, vai deixando de ser novidade e passa a ser referência, e isso, aos poucos, pode influenciar decisões reais, liberar dinheiro em bancos multilaterais, orientar políticas públicas e evitar que governos voltem atrás em sua palavra sem custo reputacional. No contexto das negociações da COP e de outras correlatas, ela pode se tornar referência para construção gradual de consensos, que transformam ideias soltas em compromissos concretos no futuro.
O fato de a Declaração ainda possuir relativamente poucos endossos no conjunto de países que participaram da COP30 é sintomático da dificuldade da entrada dos temas da alimentação e da fome no debate climático, mesmo quando associado a questões mais amplas de proteção social. Pode-se dizer que a marginalização continua a tendência registrada em pesquisas anteriores de Thiago Lima e Atos Dias sobre as COP27 e COP28.
Mas o fim da COP30 em Belém não é o fim do jogo. Na verdade, ela é o início da presidência brasileira da COP, que se encerra somente em novembro de 2026. Até lá, e sem desconsiderar as dificuldades concretas e as altas incertezas do cenário internacional, devemos reconhecer dois trunfos do Brasil, e particularmente do governo Lula, que podem contribuir para fazer a conexão entre fome, alimentação e clima.
O primeiro é que, em 2024, durante sua presidência do G20, o país foi capaz de impulsionar o lançamento da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, cujo escritório definitivo foi inaugurado em outubro, na sede da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em Roma, e já se encontra a pleno vapor. Se funcionar bem em seu ano de inauguração, a Aliança pode dar concretude a uma nova arquitetura de solidariedade internacional e ganhar mais musculatura para defender a articulação entre clima e comida.
Em segundo lugar, porque em 2025 o país saiu, novamente, do Mapa da Fome da FAO, dando uma demonstração ao mundo de que efetivamente sabe como avançar no enfrentamento à insegurança alimentar. Isso desperta o interesse de países em cooperar com o Brasil na área agroalimentar e aí as políticas brasileiras podem inspirar pelo exemplo. Com um ano de trabalho pela frente, e de forma menos midiática do que em novembro, talvez seja possível realizar avanços discretos, porém estratégicos, na agenda de enfrentamento às mudanças climáticas por meio da mudança dos sistemas alimentares.
Nota
1 – Os signatários são Brasil, Alemanha, Áustria, Bielorrússia, Cabo Verde, Cazaquistão, Chile, China, Colômbia, Coreia do Norte, Cuba, Dinamarca, Equador, Espanha, Eslováquia, Eslovênia, Etiópia, França, Guiné-Bissau, Haiti, Indonésia, Mianmar, Malásia, Mauritânia, México, Moçambique, Noruega, Panamá, Países Baixos, Peru, Portugal, Quirguistão, Reino Unido, República da Guiné, República do Congo, República Dominicana, Ruanda, São Cristóvão e Névis, Seychelles, Sudão, União Europeia, Uruguai, Zâmbia e Zimbábue.
*Thiago Lima é doutor em Ciência Política pela Unicamp, professor do curso de Relações Internacionais da UFPB, coordenador licenciado do FomeRI e membro do Instituto Fome Zero.
**Nádia Aun é doutora em Políticas Públicas pela UFRRJ, pesquisadora e colaboradora do FomeRI.
***Mateus Ribeiro Silva é engenheiro agrônomo, mestre em Gestão Pública e Cooperação Internacional pela UFPB, pesquisador e colaborador do FomeRI e membro da Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA) na Paraíba.
Editado por: Carolina Ferreira
Publicado originalmente no Brasil de Fato
https://www.brasildefato.com.br/colunista/fomeri/2025/12/09/a-conferencia-das-partes-na-amazonia-sem-clima-para-falar-de-comida/
