Blog do IFZ | 12/09/2025
No artigo “The concentration camps for famine victims in Brazil and the struggle for their public memorialisation”, o Dr. Thiago Lima, do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba, investiga um capítulo pouco lembrado da história brasileira: os campos de concentração destinados a retirantes nordestinos durante as grandes secas do início do século XX. Com base em arquivos, relatos orais e estudos de memorialização, Lima revela como esses espaços, oficialmente criados para “proteger” cidades da fome e das epidemias, funcionaram como instrumentos de segregação social e controle populacional, expondo comunidades sertanejas historicamente vulneráveis por questões de classe, cor e descendência. O texto acompanha também a lenta construção de um luto público, examinando as tensões entre memória, política e economia que marcaram o reconhecimento das ruínas e da Caminhada da Seca. Ao combinar história, sociologia e estudos culturais, o artigo evidencia que a fome no Brasil não é apenas um fenômeno natural, mas resultado de escolhas políticas, e que resgatar sua memória é, ao mesmo tempo, um ato de justiça e um convite à reflexão sobre desigualdades persistentes.
Os “currais da fome”
![Os "currais da fome"eram campos de concentração para as vítimas das secas no Ceará, construídos em 1915 e 1932 [Imagem em domínio público]](https://ifz.org.br/wp-content/uploads/2025/09/Os-currais-da-pobreza-eram-campos-de-concentracao-para-as-vitimas-das-secas-no-Ceara-construidos-em-1915-e-1932.webp)
construídos em 1915 e 1932 [Imagem em domínio público]
No início do século XX, o sertão nordestino viveu um dos capítulos mais dolorosos da história brasileira. Durante as secas de 1915 e 1932, milhares de retirantes foram impedidos de chegar a Fortaleza e confinados em espaços que o governo chamou oficialmente de “campos de concentração”. Sob o argumento de proteger a capital da fome, das epidemias e da miséria, instalaram-se áreas de internamento que rapidamente se transformaram em depósitos de corpos enfraquecidos pela doença, pela carência de alimentos e pela desesperança.
Apresentados como abrigos de socorro, esses locais eram, na prática, espaços de contenção: cercados por guardas, sem liberdade de circulação, com ração insuficiente e água contaminada. No imaginário popular, ganharam o nome de “currais da fome”, expressão que traduzia a degradação a que estavam submetidos. Estima-se que centenas de milhares de pessoas tenham passado pelos campos, e muitas não sobreviveram.
A origem de um silêncio
Apesar da dimensão da tragédia, esses episódios permaneceram fora da memória pública por décadas. Ao contrário de guerras e atentados, as fomes raramente são lembradas em monumentos ou cerimônias oficiais. No Brasil, a marginalização histórica do sertanejo — camponeses pobres, em sua maioria não brancos, descendentes de escravizados e indígenas — contribuiu para essa espécie de esquecimento. Reconhecer os campos significava expor o racismo estrutural e a desigualdade que sustentaram a política de confinamento.
O silêncio foi reforçado por outro fator: após o Holocausto, a expressão “campo de concentração” tornou-se indissociável da barbárie nazista. Admitir que o Brasil também usara esse termo era politicamente incômodo. Assim, a história foi relegada às margens, sustentada apenas por romances, artes visuais e relatos orais.
O retorno da memória
O resgate dessa memória só ganhou força no fim do século XX. Em Senador Pompeu, onde se localizava o maior campo de 1932 — o de Patu — camponeses e religiosos iniciaram ainda nos anos 1930 uma romaria pelas almas dos mortos. O ritual cresceu e, em 1982, transformou-se na Caminhada da Seca, que reúne milhares de pessoas a cada ano. O gesto religioso tornou-se também ato político: a cada passo, denunciava-se que aquelas mortes não poderiam permanecer esquecidas.
Na década de 1990, jovens artistas e estudantes criaram a Equipe Cultural 19-22, coletivo dedicado a pesquisar arquivos, registrar depoimentos de sobreviventes e divulgar a história em peças, filmes, jornais e escolas. A articulação desse grupo, somada à mobilização popular da caminhada, abriu caminho para o reconhecimento oficial.
Após disputas judiciais e administrativas, em 2019 o governo municipal de Senador Pompeu declarou o campo e a peregrinação patrimônios material e imaterial. Três anos depois, o Estado do Ceará também tombou as ruínas de Patu. Hoje, espalhadas por 16 hectares, as paredes de tijolo sobrevivem como testemunhas concretas de uma experiência quase apagada.
Entre fé, política e economia
A memorialização dos campos não se construiu apenas pela fé e pela resistência cultural. Também se entrelaçou a interesses políticos e econômicos. A Caminhada da Seca passou a atrair visitantes, impulsionando o comércio local e despertando o interesse de autoridades em transformar a memória em recurso turístico. O risco, alertam pesquisadores, é que a mercantilização do sofrimento dilua o caráter crítico do evento. Ao mesmo tempo, foi justamente essa dimensão econômica que deu visibilidade a um movimento antes ignorado pelo poder público.
A dimensão política da fome
O pesquisador Thiago Lima destaca que as fomes nunca são fenômenos exclusivamente naturais. A seca pode ser o gatilho, mas a catástrofe resulta de escolhas políticas: quem tem acesso à terra, quem controla a água, quem recebe ajuda. No caso do Ceará, a decisão de segregar retirantes revelou a intenção de proteger as elites urbanas, mantendo os famintos longe da vista e explorando sua força de trabalho ao menor custo possível.
Relembrar os campos, portanto, não é apenas homenagear mortos. É questionar as estruturas que transformaram a fome em arma de contenção social. É reconhecer que a vulnerabilidade dos sertanejos foi construída historicamente, em um país marcado pela herança colonial, pelo racismo e pela desigualdade extrema.
Justiça pela memória
O tombamento das ruínas de Patu e o reconhecimento da Caminhada da Seca são passos importantes, mas não encerram a questão. O silêncio que perdurou por décadas mostra como a memória coletiva é disputada, sujeita a apagamentos deliberados. Recuperar essa história não apenas honra os mortos, mas também ilumina o presente: no Brasil de hoje, a fome voltou a atingir milhões de famílias.
Recordar os campos do Ceará é, nesse sentido, um ato de justiça. Não se trata de cristalizar a imagem de vítimas passivas, mas de reconhecer homens e mulheres que resistiram até o limite da sobrevivência — e de cobrar responsabilidade das elites que permitiram sua degradação. Como lembram os organizadores da Caminhada, a cada novembro o cortejo reafirma um compromisso simples e difícil: fome, nunca mais.
Baixe aqui o artigo “The concentration camps for famine victims in Brazil and the struggle for their public memorialisation“
