Brasil aposta em aliança contra a fome para obter consensos no G20

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Dados da FAO indicam que 750 milhões de pessoas passaram fome no mundo; proposta do país mistura financiamento, programas sociais e cooperação

Por Janaína Figueiredo no O Globo | 15/03/2024

Antes de o Brasil assumir a presidência do G20, em dezembro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se reuniu com o assessor internacional da Presidência da República, Celso Amorim, o chanceler Mauro Vieira e o embaixador Mauricio Lyrio, secretário de Assuntos Econômicos e Financeiros do Ministério das Relações Exteriores e sherpa brasileiro (sherpas são emissários pessoais dos chefes de Estado do grupo, que lideram as negociações) para pedir a elaboração de uma proposta mundial contra a fome.

Mauricio Lyrio: “A aliança terá participação dos países que têm recursos e dos com boa experiência no combate à fome” [Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil]
Mauricio Lyrio: “A aliança terá participação dos países que têm recursos e dos com boa experiência no combate à fome”
[Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil]

A iniciativa, chamada de Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, é considerada pelo governo o coração da agenda brasileira no G20. O grau de adesão que conseguir, dentro e fora do grupo, determinará, em grande medida, o sucesso da presidência do Brasil, que dura um ano.

Num mundo no qual, de acordo com dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 735 milhões de pessoas passaram fome em 2022 (último relatório disponível), ampliando em 122 milhões de pessoas o número de 2019, antes da pandemia de covid-19, o Brasil colocou sobre a mesa uma proposta inovadora de combate a um flagelo que assola, principalmente, países em desenvolvimento.

“Dos 735 milhões que passaram fome [em 2022], 150 milhões são crianças até cinco anos. Existe no mundo quase um Brasil de bebês e crianças passando fome. É brutal”, diz Lyrio, que comanda, junto a outros setores do Itamaraty e do Ministério do Desenvolvimento Social, o processo de construção de uma aliança que pretende ir muito além do G20.

Nesta semana, o sherpa brasileiro foi até Nova York apresentar o projeto na sede das Nações Unidas. Em julho, a aliança será oficialmente lançada numa reunião no Rio. “A fome é imoral e deve ser prioridade absoluta da comunidade internacional”, frisa o embaixador.

A aliança é defendida por Lula em foros internacionais, nos quais o presidente tem convidado países de fora do G20 a aderir à proposta brasileira, que mistura políticas públicas, financiamento, cooperação e renegociação de dívidas. Na visão do governo brasileiro, não basta dar dinheiro aos países para combater a fome, é necessário, acima de tudo, dar ferramentas que já tenham sido usadas em outros países e dado bons resultados.

Num Brasil que saiu do mapa da fome entre 2014 e 2021 e voltou a ele em 2022, Lula aposta na ação dos Estados, em parceria com outros países e organismos internacionais, para reduzir de forma expressiva a insegurança alimentar. E acha que o caminho é o mesmo para o resto do mundo.

“A ideia é que não se pode fazer transferência de renda indefinidamente. Por isso a aliança terá uma cesta de programas sociais já implementados e considerados eficientes, que os países que aderirem deverão escolher e aplicar, entre eles muitos brasileiros”, explica o ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Wellington Dias, que esteve recentemente com Lula na Etiópia e disse ter ficado maravilhado com o impacto de um programa local inspirado no Bolsa Família, já adotado, segundo ele, por 82 países.

Wellington Dias: “Ideia é não se fazer transferência de renda indefinidamente” [Foto: Gesival Nogueira Kebec/Valor]
Wellington Dias: “Ideia é não se fazer transferência de renda indefinidamente
[Foto: Gesival Nogueira Kebec/Valor]

O chamado Pilar Autônomo, central na aliança, se refere ao compromisso dos países aderentes de escolherem programas da cesta de propostas, que ainda está sendo criada. A aliança terá, também, um Pilar Financeiro, que estabelecerá mecanismos para que os países que integrem a iniciativa tenham acesso a recursos de organismos internacionais, doações privadas e de outras nações. O terceiro pilar é o que fala sobre conhecimento e cooperação. A ideia é que países, sobretudo os não desenvolvidos, que têm boas experiências em políticas públicas de combate à fome forneçam assistência técnica a outras nações.

A proposta brasileira defende, também, a troca de dívida por implementação de programas sociais. Ou seja, um país endividado poderá renegociar com seu credor – inclusive conseguir um perdão parcial – se assumir o compromisso de realocar o dinheiro em programas de combate à fome. Os recursos também poderão ser destinados a obras de saneamento, infraestrutura e educação, entre outros, acrescentou Dias.

“Os países africanos, juntos, acumulam uma dívida externa de US$ 850 bilhões. Eles entraram numa ciranda e para combater a fome é preciso sair dela”, aponta o ministro.

A cesta de programas a ser oferecida aos aderentes deverá incluir iniciativas implementadas em países como China, Índia, Bangladesh e Brasil. A China, por exemplo, tirou mais de 800 milhões de pessoas da pobreza desde o fim da década de 1970. O país investiu em infraestrutura rural, subsídios agrícolas, educação e saúde, entre outros. Em Bangladesh, o Banco Grameen é reconhecido mundialmente por sua inovadora iniciativa de microcrédito, fundamental na luta contra a pobreza.

Na Índia, o sistema Aadhar é exemplo pioneiro no uso de tecnologia para facilitar a inclusão social e financeira da população mais vulnerável. Lançado em 2009, trata-se de um sistema de identificação biométrica que oferece um número de identidade único para cada cidadão, permitindo o acesso a serviços governamentais, bancários e de assistência social.

“A aliança é muito democrática e terá participação dos países que têm recursos e dos não desenvolvidos mas com boa experiência no combate à fome, como o Brasil. Será uma combinação inédita de financiamento, cooperação e programas sociais”, afirma Lyrio.

Hoje existe um beco sem saída: os países que mais precisam de recursos são os mais endividados”

Mauricio Lyrio

No dia 24 de julho, a iniciativa será lançada numa reunião de ministros da Fazenda, Relações Exteriores e Desenvolvimento Social. Neste dia, será formalmente aberta a aliança para inscrições de países do G20 e de fora do grupo.

Mapa da Fome Prevalência da subnutrição 2020-2022
Mapa da Fome Prevalência da subnutrição 2020-2022

“Hoje existe um beco sem saída: os países que mais precisam de recursos são os mais endividados. É uma triste coincidência, que afeta países africanos, latino-americanos e caribenhos”, frisa o sherpa brasileiro, que já está conversando com potenciais países doadores, interessados em colaborar com a iniciativa brasileira.

Um dos aspectos mais destacados pelos diplomatas brasileiros que estão trabalhando na proposta é a condição de que países que sejam beneficiários de recursos – públicos ou privados – se comprometam a aplicar programas incluídos na cesta da aliança. Atualmente, está sendo realizado um estudo para determinar quais são os fundos existentes no mundo para o combate à fome, em paralelo a contatos com eventuais doadores privados. Na visão do ministro do Desenvolvimento brasileiro, o envolvimento do setor privado é crucial.

“Recentemente, 250 dos empresários mais ricos do mundo fizeram um manifesto defendendo serem taxados para contribuir com a redução da desigualdade. É preciso abrir essa agenda”, enfatiza Dias.

Recursos da FAO e do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas são dois exemplos de financiamento por parte de organismos internacionais. Existem, ainda, fundos do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) destinados a projetos de infraestrutura ou agricultura, que têm impacto positivo no combate à fome. Com base no resultado do estudo em andamento, explica Lyrio, “serão buscadas formas alternativas de financiamento”.

“Queremos otimizar os fundos que já existem, conseguir doações e, idealmente, criar uma carteira de financiamento para a aliança”, comenta o sherpa brasileiro.

As regras para aderir à aliança ainda estão sendo negociadas e devem ser anunciadas em maio. A aliança terá um secretariado, integrado por funcionários das principais organizações internacionais que lidam com o problema da fome. Serão aproveitadas estruturas já existentes e não será criada uma sede para a iniciativa. As reuniões serão, em sua grande maioria, virtuais.

“Trazemos a experiência do Brasil, que superou a fome nos primeiros dois governos de Lula e depois, infelizmente, voltou ao mapa global da fome. É o tema mais consensual da agenda, porque com a atual gravidade da situação é difícil não querer apoiar uma iniciativa como essa”, conclui Lyrio.

Publicado no Valor Econômico
https://valor.globo.com/google/amp/brasil/noticia/2024/03/15/brasil-aposta-em-alianca-contra-a-fome-para-obter-consensos-no-g20.ghtml