Por Dalva Maria da Mota, Ana Felicien, Quimera de Moraes Peixoto e Nazaré Reis Ghirardi
Na paisagem rica e desafiante da Amazônia Oriental, três comunidades quilombolas — Jacarequara, Tipitinga e Pimenteira, no Pará — enfrentam um processo complexo e transformador em sua alimentação. O artigo científico “Comida de hoje, comida de ontem em quilombos na Amazônia Oriental do Pará“, publicado na Revista de Economia e Sociologia Rural, detalha como a transição alimentar tem moldado a vida dessas comunidades. Sob a coordenação da pesquisadora Dalva Maria da Mota, da Embrapa Amazônia Oriental, o estudo analisou as mudanças alimentares a partir das perspectivas de gênero e geração em um contexto de insegurança alimentar.
Historicamente dependentes de práticas agroextrativistas em roças e quintais, essas comunidades viam sua subsistência garantida pelo cultivo de mandioca, cará, arroz e frutas, aliados ao extrativismo de caça e pesca. No entanto, alterações no uso da terra, perda de áreas florestais e mudanças climáticas forçaram uma diminuição na produção local. Hoje, alimentos industrializados dominam o cotidiano, marcados por praticidade e rápida preparação, mas distantes dos valores culturais e da segurança alimentar de outrora.
“Produzíamos quase tudo no lote. Hoje compramos nas feiras e mercados, já que terras e recursos estão mais escassos”, diz uma das moradoras de Tipitinga entrevistada para o estudo.
A pesquisa destaca o papel central das mulheres quilombolas como guardiãs do saber culinário e da produção local. Enquanto no passado todas as gerações participavam ativamente na produção de alimentos, atualmente jovens migram para cidades em busca de estudo ou trabalho, e a tarefa de sustentar os hábitos alimentares recai sobre uma força de trabalho envelhecida.
Esse cenário agrava as desigualdades estruturais que afetam comunidades negras e rurais, como enfatizado no artigo. No entanto, ainda resistem alimentos tradicionais, como a farinha de mandioca e a goma, presentes em receitas antigas que hoje se adaptam a novos hábitos.
Desafios da transição alimentar
A transição nutricional, refletida no aumento do consumo de ultraprocessados como bolachas e refrigerantes, traz impactos preocupantes, como a perda de autonomia alimentar e o declínio de práticas agrícolas tradicionais. Embora programas sociais, como o Bolsa Família, forneçam apoio financeiro, a dependência de compras externas aumenta o estresse e a sensação de insegurança, especialmente entre mulheres responsáveis pela alimentação familiar.
Autonomia e Esperança
Apesar das adversidades, iniciativas locais como a Rede Bragantina oferecem um vislumbre de resiliência e inovação. Grupos organizados produzem farinhas artesanais e reinterpretam receitas tradicionais, conectando as comunidades ao mercado urbano e mantendo vivos os laços culturais com o território. Além disso, os quintais das casas seguem como espaços de produção e autonomia, fundamentais para preservar a segurança alimentar.
O artigo enfatiza que a transição alimentar dessas comunidades não é apenas uma questão de consumo, mas de sobrevivência cultural e adaptação em um cenário de profundas desigualdades. “Esses desafios e transformações evidenciam como o acesso reduzido aos recursos e o impacto da industrialização modificam os hábitos alimentares e sociais dessas comunidades”, conclui Dalva Mota.
Sobre as autoras
Dalva Maria da Mota – Pós-doutora em Antropologia Social pela University of London. Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa/Amazônia Oriental, Belém-PA. Professora do Programa de Pós-Graduação em Agriculturas Familiares da Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista de Produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Ana Felicien – Doutoranda em Agriculturas Amazônicas pela Universidade Federal do Pará (PPGAA/UFPA)
Quimera de Moraes Peixoto – Programa de Pós-graduação em Agriculturas Amazônicas (PPGAA), Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém (PA), Brasil
Nazaré Reis Ghirardi – Rede Bragantina de Economia Solidária, Santa Luzia do Pará (PA), Brasil.
Publicado na Revista de Economia e Sociologia Rural (RESR), vol.62, n3, e283292, 2024
http://dx.doi.org/10.1590/1806-9479.2023.283292resr
Baixe aqui o artigo “Comida de hoje, comida de ontem em quilombos na Amazônia Oriental do Pará“