Como o comércio mundial de commodities impacta o preço da comida no Brasil

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Blog do IFZ | 30/04/2025

A última publicação do estudo da FAO sobre o mercado mundial de commodities agrícolas — The State of Agricultural Commodity Markets — trouxe informações particularmente relevantes para entendermos o movimento consistente de alta nos preços dos alimentos no Brasil. Um dos maiores exportadores de alimentos do mundo, o Brasil figura como ator central no comércio global de commodities como soja, carne bovina e milho. Ao mesmo tempo, o país enfrenta desafios estruturais que reverberam nos aspectos ambientais e sociais do comércio agrícola.

O aumento dos preços globais dos alimentos, impulsionado por choques recentes — pandemia, guerra e mudanças climáticas —, tem efeitos ambivalentes para o Brasil. De um lado, valoriza as exportações e amplia o superávit da balança comercial agropecuária. De outro, agrava a inflação alimentar doméstica, penalizando os consumidores mais pobres e expondo as contradições entre a vocação exportadora e a insegurança alimentar interna. A concentração das exportações em poucos produtos e mercados, aliada à vulnerabilidade dos pequenos produtores à volatilidade de preços e à baixa capacidade de adaptação tecnológica, reforça desigualdades internas e a dependência de mercados externos.

Além disso, a pressão ambiental resultante da produção voltada para exportação — especialmente o desmatamento no Cerrado e na Amazônia — tem colocado o país sob crescente escrutínio internacional. Cláusulas ambientais em acordos comerciais, como o pacto Mercosul–União Europeia, tendem a impor barreiras condicionadas à sustentabilidade, o que exige do Brasil um esforço coordenado de governança ambiental, transparência e rastreabilidade das cadeias produtivas.

Em última instância, o Brasil encontra-se numa encruzilhada: expandir sua competitividade no comércio agrícola global ou garantir que essa expansão não comprometa sua coesão social nem seus recursos naturais. As diretrizes apontadas pelo SOCO 2022 revelam que, para que o comércio agrícola funcione como vetor de desenvolvimento sustentável, será necessário um redesenho das políticas públicas que articule produtividade, inclusão e sustentabilidade — com especial atenção à regulação ambiental e à segurança alimentar nacional.

Os mercados globais de commodities agrícolas em 2022: entre choques sistêmicos e desigualdades persistentes

A edição de 2022 do relatório The State of Agricultural Commodity Markets – The Geography of Food and Agricultural Trade: Policy Approaches for Sustainable Development (SOCO 2022), elaborada pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), lança luz sobre as profundas transformações e vulnerabilidades nos mercados agrícolas globais em um contexto marcado por pandemias, guerras e mudanças climáticas. Mais do que uma compilação de dados, o relatório se apresenta como uma análise crítica dos mecanismos comerciais que sustentam a segurança alimentar global e dos limites do atual modelo de integração comercial para assegurar um desenvolvimento sustentável e equitativo. O documento enfatiza como o aumento dos preços dos alimentos, catalisado por uma série de choques sucessivos, impõe desafios prementes, sobretudo aos países em desenvolvimento — entre eles, o Brasil.

Resiliência e tensão: os mercados agrícolas à prova

A eclosão da pandemia da COVID-19 em 2020 foi um dos maiores testes já impostos aos sistemas agroalimentares globais. Apesar das severas restrições à mobilidade e da instabilidade generalizada, o comércio internacional manteve-se como um eixo estabilizador, garantindo o fluxo de alimentos entre regiões excedentárias e deficitárias. Em contraste com a crise alimentar de 2008, os países mantiveram um grau notável de cooperação, evitando o colapso dos mercados agrícolas globais. No entanto, essa resiliência foi novamente testada com o início da guerra na Ucrânia — um dos celeiros do mundo —, cujos efeitos adversos sobre os fluxos comerciais, os preços e a segurança alimentar mundial são amplamente reconhecidos no relatório.

Nesse cenário de incertezas, o SOCO 2022 destaca o papel das políticas comerciais como ferramentas centrais para mitigar crises, promover dietas saudáveis e garantir resiliência sistêmica. A institucionalização dessas políticas no âmbito multilateral, com destaque para a Organização Mundial do Comércio (OMC) desde 1995, estabeleceu um ambiente relativamente previsível. Paralelamente, proliferaram acordos regionais de comércio (RTAs, na sigla em inglês), que passaram a incluir não apenas medidas de acesso a mercado, mas também cláusulas regulatórias e ambientais.

Geografia do comércio e desigualdade estrutural

Uma das contribuições centrais do SOCO 2022 é a análise da “geografia do comércio” de alimentos e produtos agrícolas. A localização das trocas comerciais não apenas revela padrões de integração regional e global, mas também evidencia profundas disparidades de riqueza e produtividade agrícola. Embora o comércio agrícola global tenha se tornado menos concentrado desde 1995 — com a entrada de novos atores, especialmente países de baixa e média renda —, a distribuição dos ganhos permanece desigual.

A produtividade agrícola é um dos eixos centrais dessas disparidades. Segundo o relatório, os 10% de países mais ricos produzem, em média, 70 vezes mais valor agregado agrícola por trabalhador do que os 10% mais pobres. Essa lacuna revela-se determinante para o aproveitamento das vantagens comparativas — o princípio econômico segundo o qual países tendem a exportar o que produzem de forma mais eficiente e importar o que lhes custa mais produzir. Nos países mais pobres, o acesso limitado à tecnologia, insumos, crédito e educação — sobretudo para mulheres — perpetua um ciclo de baixa produtividade e fragilidade comercial.

Regionalização e vulnerabilidade às rupturas

Embora o processo de globalização do comércio agrícola tenha perdido ímpeto desde a crise financeira de 2008, a intensificação das trocas dentro de regiões — a chamada regionalização — tornou-se uma tendência marcante. Os países tendem a formar “blocos comerciais” cujos vínculos são moldados pela proximidade geográfica e pela convergência regulatória promovida por acordos regionais. Essa dinâmica fortalece cadeias de valor regionais e aumenta a resiliência a choques externos, desde que a diversidade de parceiros comerciais seja assegurada.

Contudo, o relatório mostra que, para a maioria dos países, as importações estão concentradas em poucos produtos e parceiros comerciais. Tal concentração acentua a vulnerabilidade diante de choques localizados — como desastres naturais, conflitos ou crises logísticas — nos países exportadores. A diversificação das importações surge, assim, como estratégia fundamental para reforçar a segurança alimentar nacional.

Impactos ambientais e desafios regulatórios

O comércio internacional de alimentos e produtos agrícolas não é isento de externalidades ambientais. A exportação de commodities como carne bovina, soja e óleo de palma, altamente demandadas no mercado global, está associada a cerca de 40% do desmatamento tropical ocorrido entre 2000 e 2010. Embora o comércio possa promover uma alocação mais eficiente de recursos naturais — como água e terra —, ele também pode amplificar pressões sobre ecossistemas já fragilizados.

O SOCO 2022 argumenta que as externalidades ambientais do comércio são, em grande medida, determinadas por condições locais e pela ausência de regulação eficaz. Nesse contexto, as políticas comerciais devem ser complementadas por instrumentos ambientais específicos — tanto em nível nacional quanto regional. Os acordos comerciais modernos vêm incorporando cláusulas ambientais, o que pode incentivar práticas sustentáveis entre os produtores. No entanto, sua efetividade depende da existência de mecanismos institucionais robustos, como sistemas de solução de controvérsias e avaliações de impacto ambiental.

Integração comercial e exclusão estrutural

A estagnação das negociações multilaterais no âmbito da OMC — especialmente em temas como estoques públicos de alimentos e subsídios domésticos — contrasta com o avanço vertiginoso dos RTAs, que passaram de menos de 25 em 1990 para mais de 350 em 2022. Embora esses acordos promovam crescimento para seus signatários, também geram riscos de exclusão para países com menor capacidade técnica e institucional de negociar ou implementar disposições complexas.

Nesse sentido, o relatório sugere que a liberalização multilateral continua sendo o caminho mais eficiente para maximizar os ganhos de bem-estar global e promover o desenvolvimento inclusivo. Ao mesmo tempo, reconhece que acordos regionais mais profundos têm papel relevante na harmonização regulatória e na difusão de padrões socioambientais.