Para o epidemiologista Carlos Monteiro, que criou o conceito de ultraprocessados, é preciso retomar o valor que a comida tem dentro da nossa cultura; leia a entrevista
Por Thaís Manarini no O Estado de S.Paulo | 06/12/2025
Quando você precisa colocar combustível no carro, é natural dar prioridade àquele posto de gasolina menos movimentado – afinal, ninguém ganha nada aguardando na fila. Essa é uma otimização da rotina que faz completo sentido, na visão do médico epidemiologista Carlos Augusto Monteiro, professor emérito da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Acontece que, segundo ele, temos tratado a preparação e o consumo dos alimentos do mesmo jeito que lidamos com o abastecimento de um veículo, isto é, como um completo desperdício de tempo. “Mas é o oposto. Na verdade, é um ganho de vida, de saúde”, defende o pesquisador.
Monteiro é considerado um dos principais nomes da epidemiologia nutricional, a ciência que estuda a relação entre a dieta de uma população e o desenvolvimento de doenças. No começo do ano, o jornal americano The Washington Post o incluiu na lista das 50 pessoas mais influentes do mundo para 2025. No dia 6 de novembro, um levantamento da Agência Bori, em parceria com a Overton, apontou que Monteiro é o segundo cientista brasileiro (entre 107) mais citado em documentos que embasam tomadas de decisão ao redor do globo. Alguns dias depois, em 12 de novembro, seu nome surgiu na lista da Clarivate – uma consultoria especializada em informações científicas – como um dos pesquisadores mais citados do mundo.
Para entender a fama de Monteiro, é preciso voltar a 2009, ano em que ele, então coordenador científico do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP (Nupens/USP), lançou com seu grupo um sistema de classificação dos alimentos de acordo com o grau de processamento. O trabalho, batizado de Nova, trazia, pela primeira vez, o conceito de “ultraprocessados”. “Foi uma quebra de paradigma”, define o pesquisador.
Naquele momento, imperava o que se chama de nutricionismo, quando certos nutrientes, a exemplo de gordura, sódio e açúcar, eram individualmente ligados ao surgimento de problemas de saúde. Mas Monteiro percebeu que os brasileiros estavam consumindo esses ingredientes críticos por meio de produtos baratos e hiperpalatáveis formulados pela indústria – e eles, por sua vez, tinham um potencial enorme de alavancar problemas de saúde. Seus achados foram corroborados por estudos conduzidos nos quatro cantos do planeta.
Agora, segundo ele, o desafio é transformar essas evidências em políticas públicas, um movimento que enfrenta resistência de parte da própria academia e, claro, bate de frente com os interesses de poderosas corporações.
Nessa entrevista, Monteiro, hoje coordenador emérito do Nupens/USP, fala sobre os bastidores do surgimento da Nova, aponta quais críticas à classificação considera válidas e reflete sobre os caminhos para frear a participação dos ultraprocessados na rotina dos brasileiros. “Esses produtos não vão sumir. Por isso, precisamos semear o valor da comida, da cultura. Aqui, ainda tem esse peso afetivo.” Confira o bate-papo.
Depois de escolher a área da nutrição, como foi o salto para estudar os ultraprocessados?
No início do nosso grupo, e durante 15 anos, eu e a professora Maria Helena Benício desenvolvemos trabalhos sobre a desnutrição na infância, situação que começou a reduzir bastante no Brasil. Fizemos muitos trabalhos importantes sobre as causas desse declínio.
Progressivamente, a gente começou a se interessar pela obesidade, porque estava aumentando no Brasil, sobretudo na população adulta no início, mas agora a gente também vê em crianças e adolescentes. Usamos inquéritos de compras de alimentos, que era o que tínhamos disponível na época. Conseguimos dados da década de 1970 que ninguém ainda tinha tido acesso. Começamos a perceber, basicamente, que as pessoas estavam comprando menos alimentos tradicionais, como arroz, feijão, verduras, batata, mandioca, etc. E menos ingredientes culinários, como sal, açúcar e óleo.
O que chamou a atenção é que, geralmente, a gente associa essas doenças crônicas justamente ao consumo de sal, gordura e óleo. Então, vimos que as pessoas estavam comprando menos desses ingredientes, mas consumiam a mesma coisa ou até mais de sal, gordura e óleo. E por que isso? Porque as preparações culinárias estavam sendo trocadas por alimentos industrializados prontos para consumo.
Como chegaram nessa nomenclatura, isto é, “ultraprocessados”?
A gente começou a chamar esse grupo de “alimentos prontos para consumo”. Mas percebemos que eles não eram os processados tradicionais, acrescidos de açúcar ou gordura, como conservas, pães e queijos. Eles eram uma coisa diferente, e tentavam imitar os alimentos tradicionais e as preparações culinárias, inclusive pelo nome. Ou seja, macarrão instantâneo é a versão ultraprocessada do macarrão, mas completamente diferente.
Caracterizamos esses itens como um grupo de interesse e criamos, então, a classificação Nova, que tem justamente: (1) os alimentos naturais; (2) os ingredientes culinários; (3) os processados; (4) o grupo de ultraprocessados, que a indústria produz para substituir os outro três grupos e as preparações culinárias.
Constatamos também que esses produtos (ultraprocessados) eram muito lucrativos, porque são feitos com ingredientes baratos. E isso explicava por que a indústria investia cada vez mais neles, inclusive do ponto de vista de publicidade. Começamos a ver que, por causa das características dos ultraprocessados, como não ter o alimento de forma integral, o perfil de nutrientes e a presença de um número enorme de aditivos, eles tinham potencial para criar problemas para a saúde.
Aí, a gente começou a estudar e a aplicar a classificação Nova em pesquisas epidemiológicas no Brasil. Mostramos que a população consumia cada vez mais ultraprocessados, e a dieta piorava muito quando isso acontecia. E havia um aumento no risco de obesidade. Foi o primeiro estudo que a gente fez.
Não tínhamos nada de políticas públicas na área até então?
Durante muito tempo, as políticas públicas na nutrição tinham como meta reduzir sal, gordura e açúcar. Mas isso jogava muito a responsabilidade nas pessoas: “Olha, coloca menos sal na comida” ou “põe menos açúcar no cafezinho”. E a gente identificou que as pessoas estavam consumindo muito sal, açúcar e gordura saturada não exatamente por uma decisão pura e simples delas. Mas esses nutrientes críticos estavam vindo de produtos ultraprocessados, que estão presentes em todos os lugares.
E há uma publicidade enorme desses produtos, que não custam tão caro. Portanto, muitos determinantes desse consumo não dependem da decisão das pessoas. Por isso, a gente precisa de políticas públicas. Além de informar a população, que continua sendo muito importante.
O Guia Alimentar para a População Brasileira (de 2014, que traz o conceito da classificação Nova) foi um passo muito importante, mais de 10 países do mundo têm guias alimentares que recomendam evitar ultraprocessados. Mas a gente quer mais. Esse é um assunto que ganhou o mundo e está sendo muito discutido.
Por falar em ganhar o mundo, assim como a Nova, o senhor também vem acumulando reconhecimento fora do Brasil. Neste ano, foi considerado uma das pessoas mais influentes do planeta pelo Washington Post. Seu nome acaba de aparecer em um levantamento da Agência Bori como um dos que mais influenciam decisões no mundo. Ao criar a Nova, o senhor já imaginava a importância que esse trabalho ia ganhar?
A rapidez com que isso aconteceu e a abrangência, realmente, eu acho que a gente não imaginava. O nosso primeiro artigo, de 2009, é um artiguinho de três páginas, um comentário. Mas a gente já tinha noção de que estava propondo algo novo. Era uma coisa que não se cogitava. Até porque o processamento de alimentos era sempre visto como uma coisa boa, que fazia os alimentos durarem mais, por exemplo. E o processamento é realmente bom, a gente precisa disso. Mas o nosso grupo identificou quando ele começa a ser complicado. E também desenvolvemos um instrumento para fazer pesquisa, para testar essa hipótese. A gente sabia que esse trabalho ia ter alguma relevância.
Agora, o diferencial realmente foi o fato de que pesquisadores de universidades muito importantes no mundo se convenceram (desse valor). Se a gente ficasse naquelas três pesquisas feitas no Brasil, não ia ter um impacto maior.
Mas quando a Nova surgiu, não foi abraçada imediatamente por todos os pesquisadores, certo?
A gente propôs a classificação em 2009 e até 2014, 2015, não tinha muita crítica. Elas começaram quando vários grupos acadêmicos passaram a adotar a classificação e as evidências surgiram. O que a gente fez foi uma quebra de paradigma. E o paradigma antigo era baseado no que a gente chama de nutricionismo: quando você liga um nutriente a uma doença.
Por exemplo: na Universidade Harvard, bastante renomada nessa área de epidemiologia nutricional, alguns pesquisadores mais jovens abraçaram a classificação e trabalham com ela. Mas há alguns professores mais velhos que têm dificuldade de aceitar esse novo paradigma. Porque, de alguma maneira, o que a gente está dizendo é que tudo o que foi feito até agora está, no mínimo, incompleto. Quer dizer, uma parte importante do quebra-cabeça foi ignorada por eles. Por isso, há um viés no sentido de encontrar problemas na classificação.
E quais são os argumentos?
Um dos problemas citados é que essas pesquisas se baseiam em estudos observacionais. Já há estudos experimentais, mas a maioria é observacional, que depende das informações que os voluntários fornecem. E, às vezes, o participante não dá a informação necessária e é preciso arbitrar. Você se pergunta: “Será que esse pão é ultraprocessado?” Porque o participante não disse o tipo de pão. Agora, se eu estiver no Brasil, talvez coloque que é processado, porque a gente come muito pão francês. Nos Estados Unidos, por outro lado, quase todo pão é ultraprocessado. Obviamente que isso dá erro, mas essas são exceções e não invalidam os resultados.
Tanto que, no caso desses estudos, as análises são repetidas trocando o alimento de lugar para ver se isso impacta no resultado, e a conclusão é que não. Mas acho importante dizer que esse tipo de crítica é, sim, uma razão para melhorar os instrumentos de coleta de dados para poder classificar melhor. E a gente fez isso no Brasil. Hoje, a classificação Nova está incorporada em um software que leva, no final, a uma classificação automática, e não manual, dos alimentos.
A gente já validou esse sistema e está usando no Nutrinet Brasil, um grande estudo que está acompanhando 100 mil pessoas. Por exemplo, a relação de ultraprocessados e depressão ou com hipertensão e obesidade, já está verificada nesse estudo, usando esse instrumento de coleta que tem muito menos erros. Ou seja, nós não somos contra avanços, e estamos inclusive engajados nisso.
Mas o que a gente sustenta é que essas críticas não invalidam os resultados e a necessidade de políticas públicas. Como alguns pesquisadores acham que essas evidências não são definitivas, defendem que é precoce pensar em políticas específicas em relação aos ultraprocessados. Mas isso eu estou falando dos pesquisadores honestos, que não têm vínculos com a indústria. A gente separa essas duas situações. Tem a crítica válida e aquela claramente comprada pela indústria.
Outra crítica que vejo é de que, dentro do grupo dos ultraprocessados, alguns produtos seriam melhores do que outros. Como o senhor enxerga isso?
As pessoas que fazem essa crítica começam assumindo que a classificação Nova não distingue grupos mais e menos saudáveis. E é verdade, porque ela não foi feita para isso. Ela foi feita para tentar caracterizar os alimentos segundo o tipo de processamento que eles sofreram. Agora, sabemos que há uma grande heterogeneidade dentro do grupo de ultraprocessados. Por exemplo: você tem os iogurtes e os refrigerantes.
Obviamente que o iogurte ultraprocessado não é tão “não-saudável” quanto o refrigerante. Mas, dentro da categoria de iogurtes, por exemplo, o de morango é menos saudável do que o natural. Um cereal matinal é muito pior do que um iogurte também. Mas ele é pior ainda do que um cereal matinal com aveia, por exemplo. Você tem de comparar os alimentos dentro das próprias categorias.
Mas o que acontece é que o ultraprocessado é um padrão de alimentação. Quando a pessoa troca a água pelo refrigerante, ela também vai trocar a fruta pelo salgadinho, ela vai trocar o iogurte natural com frutas pelo iogurte ultraprocessado, vai deixar de comer num restaurante por quilo para ir ao fast-food. E são essas trocas que fazem a pessoa adoecer.
Como anda o consumo de ultraprocessados no Brasil?
É mais ou menos 20%, só que o último dado é de 2018, não temos nada mais recente. Mas há uma coisa interessante. Tem um trabalho da Maria Laura (da Costa Louzada, vice-coordenadora científica do Nupens) e de outros pesquisadores do núcleo que traz uma análise de tendência. Eles pegaram dados de 2003, 2009 e 2018, e também uma série um pouco maior, só nas áreas metropolitanas.
O que você vê é que o aumento mais recente, de 2009 para 2018, já foi bem menor do que o observado de 2003 a 2009. E quando há uma divisão por faixa de renda e escolaridade, você percebe até uma pequena redução entre pessoas de maior renda e escolaridade.
É difícil comprovar, mas a gente atribui isso ao Guia Alimentar da População Brasileira (de 2014), que ficou muito conhecido. Por causa dele, talvez a população brasileira seja, hoje, uma das mais bem informadas em relação aos problemas dos ultraprocessados.
Como evitar o aumento desse consumo por aqui?
Se você tiver impostos e regulação de publicidade, por exemplo. Essa questão da publicidade é uma das coisas mais importantes, e a gente não faz praticamente nada nesse sentido. A propaganda é até mais urgente do que a taxação. Porque, no Brasil, os ultraprocessados não são tão mais baratos, depende muito da categoria. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, ele é baratíssimo em relação ao alimento tradicional. Nesses lugares a política fiscal é fundamental.
Aqui, o que faz as pessoas optarem por esses produtos não é a questão do preço, mas o status. E também tem uma associação entre ultraprocessados e alimentos saudáveis. Quando você pega um cereal matinal, por exemplo, tem lá (na embalagem) que é fortificado com ferro, fibra, etc. E a propaganda estimula isso. O refrigerante não pode dizer que é saudável, mas é associado ao esporte, à felicidade, ao prazer. Isso funciona porque essa propaganda é sofisticadíssima.
O Ministério da Saúde ainda não fez uma campanha de meios de comunicação de massa sobre esse assunto. E, no Brasil, promover o alimento não-ultraprocessado significa incentivar o ato de cozinhar. Mas isso é muito uma decisão política. E a gente tem um problema que é o seguinte: essas corporações são poderosíssimas e influenciam diretamente o Congresso.
Como o poder da propaganda é muito forte, isso dificulta que a população entenda totalmente o perigo desses produtos?
Pois é, eu não acredito que ninguém dê algo para o filho sabendo que vai fazer mal. Então tem esse complicador que é a falta de entendimento e a clareza por parte da população sobre os malefícios desses produtos. Por isso que a gente fez o Guia. Era claramente com esse objetivo: todo mundo sabe que refrigerante não é bom, mas talvez não saiba o quanto é ruim.
Mas quando você pega os ultraprocessados fortificados, realmente é muito difícil passar essa mensagem. Por isso, o Guia orienta olhar para a lista de ingredientes. Lá, você descobre, por exemplo, que um iogurte de morango, na verdade, só tem aroma de morango. Você não está consumindo a fruta, é só um composto químico que foi sintetizado e que reproduz esse sabor ou a cor do morango. Mas quantas pessoas leem o rótulo?
Nossa sociedade anda muito focada nessa questão de produtividade, e os ultraprocessados surfam muito nessa onda de serem mais práticos. O senhor acha que precisamos voltar a considerar a cozinha como um lugar de bem-estar?
Totalmente. E o Guia Alimentar privilegiou muito esse componente. Criamos até um capítulo que fala dos obstáculos, como preço, a falta de tempo. E as políticas públicas têm de ajudar nisso. Mas, se ao escolher o que você vai comer, o seu primeiro critério for quanto tempo vai gastar para preparar aquela comida, e colocar como prioridade reduzir esse tempo… Pergunto: para quê? Para poder ver televisão? Entrar na rede social? O que é péssimo, né. As pessoas têm a ideia de que (ao cozinhar) perdem tempo. Na realidade, não é assim.
Quando você quer abastecer o carro, não quer perder tempo com isso. Mas ninguém ganha nada mesmo ficando na fila de um posto de gasolina. Você não pode tratar a preparação de comida como trata o abastecimento de um carro. É importante incentivar esse entendimento de autocuidado. De compreensão de que cozinhar não é uma perda de tempo. Na verdade, é um ganho de tempo, de vida, de saúde.
Publicado originalmente no O Estado de S.Paulo
https://www.estadao.com.br/150-anos/viver-em-transformacao/cozinhar-nao-e-perda-de-tempo-e-ganho-de-vida-diz-brasileiro-que-transformou-a-ciencia-da-nutricao/
