De salgadinhos e refrigerantes

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Como a indústria tem atuado na reforma tributária para baratear os produtos ultraprocessados

Por Marcello Fragano Baird na Revista Piauí | #219/Dezembro 2024

Em 31 de outubro passado, o Senado Federal promoveu uma audiência pública para debater regimes diferenciados na reforma tributária, como o da cesta básica, que terá alíquota zero. A questão de fundo era discutir se os alimentos naturais e minimamente processados seriam privilegiados na mudança e, ainda, se os produtos ultraprocessados, como salgadinhos, bolachas e refrigerantes, passariam a pagar mais tributos.

Ao ser convidado a falar, o presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA), João Dornellas, disparou:
“Os grupos […] que fazem pressão aqui no Congresso deviam falar com o consumidor: ‘Consumidor, eu estou fazendo um trabalho árduo, árduo, gastando dinheiro no Congresso, pra que você pague mais caro toda vez que você quiser comer uma linguiça, uma salsicha, um sorvete, um pão de forma, um cereal matinal.’ Porque é isso que vai acontecer se houver qualquer tipo de aumento de imposto sobre qualquer tipo de alimento; o consumidor [é] que paga.”

Não eram meras frases de efeito: Dornellas estava defendendo a indústria de alimentos e atacando os grupos da sociedade que querem maior tributação para os ultraprocessados. Mas sua reação não era uma novidade. As preocupações da indústria alimentícia brasileira vêm de muito antes da reforma tributária. Há pelo menos vinte anos, os empresários do setor travam uma luta aguerrida com ONGs da área de saúde e alimentação saudável a respeito da regulação dos ultraprocessados.

Tudo começou quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no início do século XXI, tentou regular a publicidade desses produtos. A iniciativa fracassou, depois que a ABIA e outras instituições conseguiram barrá-la na Justiça, como conto em meu livro Alimentação em Jogo. A Anvisa teve que esperar até 2020 para obter um trunfo: finalmente conseguiu impor que os fabricantes de ultraprocessados colocassem na frente das embalagens indicações claras de que o produto contém altas quantidades de açúcar, sódio e gordura saturada.

Agora, a batalha é a reforma tributária, que, ao reformular todo o sistema de impostos no país, vai estabelecer o tamanho da carga de tributos que a indústria de alimentos terá de pagar. Para o setor, a reforma é uma chance de reduzir os tributos de todos os seus produtos. Mas, para os grupos de defesa da alimentação saudável, a reforma é uma oportunidade para fazer uma distinção entre os alimentos que os brasileiros devem ser incentivados ou não a consumir. A fórmula é simples: o que faz bem à saúde deve pagar menos imposto, e o que faz mal deve pagar mais, até para compensar os custos sociais, como os gastos do SUS com o atendimento de doenças causadas pela ingestão dos ultraprocessados.

Naquela audiência pública na Câmara, a fala do representante da ABIA demonstrou que o sinal amarelo já havia acendido para a indústria alimentícia, depois da confluência de dois fenômenos: ampliou-se o consenso científico sobre os malefícios dos ultraprocessados e cresceu o apoio social e político à regulação desses produtos.

A disputa atual lembra o que aconteceu com os cigarros no passado: depois de décadas de debate científico e de luta social no mundo todo, reconheceu-se, enfim, que os cigarros fazem mal e deviam ser regulados fortemente – desde a proibição da publicidade até a interdição do fumo em lugares fechados, sem falar no aumento de impostos.

Os tempos atuais são mais céleres, e o debate também. O próprio termo “ultraprocessado” foi cunhado há apenas quinze anos. Com as discussões da reforma tributária, a partir de 2023, os ânimos se acirraram, ainda mais considerando que as experiências internacionais de regulação das bebidas adoçadas e dos ultraprocessados como um todo, enquanto estratégia para promover a alimentação saudável, vêm se avolumando, inclusive com respaldo de organismos internacionais, como a OMS e o Banco Mundial.

A reforma tributária é a mais importante mudança no sistema econômico do país desde o Plano Real. Ela reestruturará o sistema de impostos por completo, unificando cinco deles (três federais: IPI, PIS e Cofins; e dois subnacionais: ICMS nos estados e ISS nos municípios) e substituindo-os por um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dual – a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) em nível federal e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) para estados e municípios. Com isso, a reforma alinha o Brasil ao modelo da maioria dos países que adotam o IVA.

As aventuras do Jesus Histórico [Charge Arnaldo Branco]

O novo modelo simplificará o sistema tributário brasileiro, gerando eficiência e, espera-se, alavancando o crescimento econômico do país. Mas, se essa reforma é tão benéfica, por que demorou tanto para ser aprovada? Porque, ao remodelar o sistema, além de afetar o pacto federativo, haverá uma reorganização do peso dos impostos nos diferentes setores. Em outras palavras, a reforma determinará quais setores econômicos terão seus impostos elevados e quais os terão reduzidos – uma mudança que, naturalmente, mexe com interesses poderosos, que exercem grande influência no Congresso, como a própria indústria de alimentos.

O governo Lula adotou a reforma tributária como uma das prioridades de sua agenda econômica. Para impulsionar os trabalhos, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, nomeou o economista Bernard Appy como secretário extraordinário da reforma tributária. Ele é um dos maiores especialistas no tema e autor intelectual da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da reforma tributária, que tramita no Congresso desde o governo de Jair Bolsonaro. A estratégia do governo Lula foi evitar recomeçar a discussão do zero e partir desse projeto original, deixando os deputados e senadores comandarem as discussões com a equipe de Appy.

No ano passado, para a tramitação da PEC, formou-se um grupo de trabalho na Câmara dos Deputados, coordenado por Reginaldo Lopes (PT-MG) e com a relatoria a cargo de Aguinaldo Ribeiro (PP-PB). A PEC elaborada por Appy apresentava apenas os contornos gerais do novo sistema tributário, deixando para a regulamentação posterior os elementos mais conflituosos. No tópico dos alimentos, por exemplo, previa apenas um tributo extra – o imposto seletivo – para produtos nocivos à saúde, sem detalhar quais categorias de produtos se enquadrariam nessa faixa.

Diante disso, a opção mais sensata para os defensores da alimentação saudável era aprofundar o debate público sobre a distinção entre alimentos que fazem bem e os que fazem mal. Foi esse o caminho trilhado pela ACT Promoção da Saúde, ONG na qual trabalho, que defende políticas públicas de controle do tabaco e do álcool, e de promoção da alimentação saudável. Em artigos de jornal, diálogos com o poder público e participação em audiências na Câmara, a ACT trouxe dados que demonstravam que os ultraprocessados prejudicam a saúde e, portanto, deveriam ser desincentivados por meio de um inédito imposto seletivo.

O termo “ultraprocessado” foi cunhado em 2009, no âmbito do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde, ligado à Universidade de São Paulo (NUPENS-USP), sob a liderança do epidemiologista Carlos Monteiro, o cientista brasileiro mais citado internacionalmente no ano passado. Refere-se a produtos industriais feitos a partir de fragmentos de alimentos, com altos teores de açúcar, gordura saturada e sódio, além de aditivos cosméticos, como edulcorantes, corantes e aromatizantes, usados para conferir sabor, cor e aroma. O núcleo também criou a categorização Nova, adotada em 2014 pelo Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, que classificou os alimentos por seu grau de processamento, em vez dos nutrientes que contêm. A orientação do guia é clara: as pessoas devem priorizar os alimentos in natura (como frutas e legumes), os minimamente processados (como arroz e feijão) e alguns processados (como queijos e carnes), evitando o consumo de ultraprocessados (como salgadinhos e refrigerantes).

Essa recomendação baseou-se no crescente número de estudos que associam os ultraprocessados a doenças. Uma revisão de 45 análises científicas envolvendo quase 10 milhões de pessoas, feita pela revista científica The BMJ (nome atual do British Medical Journal), no início deste ano, relacionou o consumo de ultraprocessados a 32 doenças, entre elas câncer, obesidade, diabetes tipo 2, depressão e doenças cardiovasculares.

Um estudo conduzido por pesquisadores brasileiros também mostrou que o consumo de ultraprocessados esteve ligado a 57 mil mortes prematuras no país em 2019 — número superior ao de mortes violentas no ano passado, que foram 46 mil. Mas, como sempre surge um ultraliberal nefelibata para defender os ultraprocessados, dizendo que as pessoas devem ser livres para comer o que quiserem, é bom lembrar que os custos sociais desse consumo são altos. Um estudo recém-lançado identificou que os ultraprocessados custam ao SUS quase 1 bilhão de reais por ano com o tratamento de apenas três doenças provocadas por seu consumo: obesidade, diabetes e hipertensão. Além disso, os custos indiretos, referentes à perda de produtividade na economia devido à morte prematura das pessoas, alcançam 9 bilhões de reais por ano.

Não à toa, 81 países, como México, França e Inglaterra, além de diversas cidades dos Estados Unidos, já criaram tributos específicos sobre bebidas adoçadas ou ultraprocessados, a maioria na última década. O caso mais recente é o da Colômbia, que aprovou, em 2022, um tributo sobre esses produtos, o chamado “imposto saudável”, proposto por um governo de esquerda. Note-se, porém, que os demais países mencionados que tomaram medida semelhante eram governados na época por partidos conservadores, o que demonstra que essa pauta não é ideológica, mas parte de uma agenda de vanguarda da saúde no século XXI.

Em junho de 2023, às vésperas da votação da reforma tributária na Câmara, a ACT lançou um manifesto, assinado por mais de 7 mil pessoas e organizações, defendendo que a proposta promovesse a alimentação saudável, com o seguinte mote: “Sem incentivos a ultraprocessados e tendo o Guia Alimentar para a População Brasileira como diretriz.” O objetivo era evidenciar na sociedade a distinção entre alimentos saudáveis, que são “comida de verdade”, e alimentos ultraprocessados, que são produtos que adoecem. Ao mesmo tempo, foi realizada uma ampla campanha de mídia, a “Doce Veneno”, veiculada nas TVs para reforçar essa distinção e pedir a taxação dos ultraprocessados.

A reação da indústria ao manifesto foi imediata. No mesmo mês, a ABIA lançou a campanha “Tem comida, tem valor”, contestando a diferenciação entre alimento saudável e não saudável e dizendo que todos eles são igualmente valiosos. A campanha chamou a atenção para o desafio da fome no país, sugerindo que mais impostos poderiam agravar a situação. Também lançou um slogan: “Não engula mais impostos em alimentos e bebidas.” Na época do lançamento, Dornellas criticou o conceito de ultraprocessados e as entidades que defendem sua tributação: “Existem grupos de pressão que têm levado ao debate a sugestão de uma tributação ainda mais alta sobre determinadas categorias de alimentos, definidas com base em uma classificação ampla, controversa e muito questionada pela ciência dos alimentos.”

Dois meses antes, esses argumentos da indústria aos ultraprocessados ganharam o reforço de um estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV), que teve ampla repercussão na mídia. Segundo o estudo, o sedentarismo, a faixa etária e a renda — e não a alimentação — seriam os fatores primordiais para o desenvolvimento da obesidade. O estudo ainda concluía que a tributação de ultraprocessados e bebidas adoçadas não seria eficaz no combate à obesidade. Uma reportagem do site O Joio e o Trigo tentou identificar os financiadores da pesquisa, mas a FGV disse que não divulgava esse tipo de informação.

O negacionismo científico é uma estratégia antiga e importante da indústria para retardar o avanço de regulações governamentais. É o que mostra o livro O triunfo da dúvida: dinheiro obscuro e a ciência da enganação (Editora Elefante), escrito pelo professor americano David Michaels, da Escola de Saúde Pública da Universidade George Washington, que ocupou importantes cargos na administração federal dos Estados Unidos. Michaels desnuda como indústrias dos mais distintos campos (tabaco, álcool, substâncias químicas) usam a estratégia de “fabricação de dúvida” ou de “fabricação de incerteza” para “semear confusão e ganhar tempo”, protelando assim a adoção de medidas governamentais de proteção à saúde ou ao meio ambiente.

Michaels relata a experiência da Sugar Research Foundation (Fundação de Pesquisa do Açúcar), hoje Sugar Association, que, já na década de 1950, reuniu nutricionistas para rebater as primeiras evidências que relacionavam o açúcar ao aumento do risco de doenças cardíacas. A solução foi apresentar contrapesquisas que diziam que o problema era a gordura, não o açúcar. Tal entendimento perdurou até a década de 1990, quando novas investigações mostraram que os dois nutrientes são críticos. Mas, com isso, a indústria já havia ganhado quatro décadas de protelação.

De acordo com Michaels, documentos descobertos por pesquisadores da Universidade da Califórnia em 2016 revelaram que “a indústria açucareira realizou uma brilhante e secreta campanha de desinformação em várias frentes a partir da década de 1950, se não antes”.

Os fabricantes de bebidas açucaradas também atuaram para impedir o progresso do entendimento científico a respeito da relação entre esses produtos e os impactos negativos para a saúde. O esforço foi liderado pela American Beverage Association (Associação Americana de Bebidas), que, entre outras empresas, representa a Coca-Cola e a PepsiCo. Uma análise que revisou 133 estudos sobre bebidas açucaradas entre 2001 e 2013 identificou que “os artigos relacionados à indústria tinham 57 vezes mais probabilidade de concluir que essas bebidas tinham um efeito fraco ou nenhum efeito prejudicial à saúde do que os estudos de cientistas independentes”. Recorrendo ao jargão americano, pode-se dizer que a Big Food (grandes indústrias de alimentos) tem mimetizado todas as estratégias da Big Tobacco para poluir o debate e atrasar a regulação.

A fim de evitar que o mesmo acontecesse nos debates da reforma tributária no Brasil, as vozes da saúde se mobilizaram. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que havia sido extinto no governo Bolsonaro e foi reinstalado no governo Lula, enviou ao Congresso, na virada de maio para junho de 2023, uma nota técnica em que defendia tratamento fiscal favorável aos alimentos saudáveis e imposto seletivo para os ultraprocessados. Em julho, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) fez recomendação similar.

A disputa em torno do imposto seletivo esquentou em 2023, muito antes de sua definição entrar em discussão na reforma tributária. Na outra ponta do debate, que tratava dos incentivos fiscais aos alimentos, ocorreu, porém, uma convergência provisória entre os grupos antagônicos.

No início das discussões sobre a reforma tributária, não havia sequer previsão de alíquotas diferenciadas para alimentos. Os tecnocratas que elaboraram a proposta inicial e diversos parlamentares eram fervorosos defensores do cashback – a devolução de impostos para a população mais pobre. Na visão deles, todos os bens e serviços, de voos aéreos a guardanapos, de armas a alfaces, deveriam ter alíquota única, sem privilegiar nenhum setor. A alíquota geral da economia não seria alta, mas a mudança possibilitaria devolver uma parcela significativa dos impostos aos mais pobres, reduzindo a desigualdade.

Embora meritória, a proposta deixava de considerar outros direitos sociais previstos na Constituição, inclusive o direito à alimentação adequada. Ao igualar o tributo de uma lata de Coca-Cola com um cacho de banana, equiparavam-se alimentos não saudáveis a alimentos saudáveis. Como os ultraprocessados se tornaram mais baratos que os demais produtos desde a pandemia, uma alíquota única significaria um enorme incentivo ao seu consumo, com terríveis consequências para a saúde da população. Hoje, 20% das calorias ingeridas diariamente pelos brasileiros vêm de ultraprocessados (a obesidade já atinge um quarto da população brasileira, número que cresce ano após ano). A alíquota única empurraria o país para o modelo de alimentação americano, um dos piores do mundo, em que 60% das calorias diárias provêm de ultraprocessados.

Organizações de defesa da alimentação saudável defendiam uma alíquota favorável aos alimentos in natura e minimamente processados. A indústria, por sua vez, propunha uma alíquota reduzida, mas para todos os alimentos, incluindo os ultraprocessados. Nesse momento, outros grupos econômicos, além da ABIA, já haviam entrado em cena, como a Associação Brasileira de Supermercados (Abras) e a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) e seu braço na sociedade civil, o Instituto Pensar Agropecuária (IPA). A pressão do setor empresarial, principalmente do agronegócio, surtiu efeito. Por causa do tamanho da bancada ruralista no Congresso e da necessidade de uma maioria qualificada de 60% para a aprovação da PEC, seria impossível não ceder à maior parte das reivindicações do setor. O deputado Aguinaldo Ribeiro, relator da reforma, apresentou então a proposta de alíquota reduzida de 50% (que depois virou 60%) para insumos agropecuários e alimentos.

A proposta era bastante complicada, pois estabelecia que os produtos com redução de alíquota seriam aqueles contidos na Lei nº 10.925/2004. Ocorre que essa lei tratava de benefícios fiscais para fertilizantes e defensivos agrícolas e, portanto, listava inúmeros agrotóxicos, além de ultraprocessados, deixando de fora vários alimentos saudáveis. Ou seja, se a proposta fosse levada adiante, alimentos saudáveis, inclusive alguns isentos de impostos, passariam a pagar impostos, enquanto ultraprocessados poderiam ter redução de carga tributária.

Foi então que a associação dos supermercadistas subiu o tom e defendeu que produtos da cesta básica fossem privilegiados na reforma, no que foi acompanhada pelo ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Wellington Dias. A pressão social também cresceu, diante da possibilidade de os alimentos ficarem mais caros, ampliando a fome no Brasil, que havia atingido 33 milhões de pessoas na pandemia.

Você sabe quem fui nas minhas vidas passadas [Charge Arnaldo Branco]

O relator cedeu às diversas pressões e, prestes a votar a reforma, anunciou em plenário: “Para acabar com a desinformação, estamos trazendo à Constituição a cesta básica nacional de alimentos, e ela tem alíquota zero. Isso é para que ninguém diga que vamos pesar a mão sobre os mais pobres.”

A mobilização do empresariado, que queria reduzir impostos para alimentos, e da sociedade civil, que desejava incentivar os produtos saudáveis, deu resultado. Retirou-se a referência à lei de 2004, recheada de ultraprocessados e agrotóxicos, e aumentaram-se os benefícios aos alimentos, com um grupo deles sujeitos à alíquota zero e outro com alíquota reduzida. O detalhamento sobre quais produtos seriam beneficiados em cada grupo foi empurrado para a regulamentação.

Durante esses debates, em conversa com um deputado da base aliada do governo, argumentei que seria importante definir, desde já, os tipos de alimentos que seriam desonerados, para indicar que apenas os saudáveis poderiam estar na cesta básica ou ter redução de 60% de impostos. O deputado respondeu que “saudável” era uma palavra “radical”, que não passaria pelo crivo do agronegócio, cujo voto seria necessário para aprovar a PEC. Felizmente, no Senado, acrescentaram-se critérios para garantir que a cesta básica fosse saudável e contemplasse a diversidade regional e cultural.

A criação de uma cesta básica saudável livre de impostos é um marco histórico para o país, com potencial de contribuir na redução da inflação de alimentos, no combate à fome com comida saudável e na prevenção de doenças.

A PEC 45/2019, da reforma tributária, foi aprovada pela Câmara dos Deputados com ampla maioria, em julho de 2023. Em outubro, a ABIA se uniu à Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães & Bolos Industrializados (Abimapi), à Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas Não Alcoólicas (Abir) e à Associação Brasileira da Indústria de Chocolates, Amendoim e Balas (Abicab) para lançar uma nova campanha sobre o assunto, batizada de “Carrinho Livre”. Pregava que a proposta governamental acabava por limitar a liberdade de escolha do consumidor.

Um pouco antes, em setembro, entraram em campo entidades da sociedade civil articuladas em torno da coalizão da reforma tributária 3S: saudável, solidária e sustentável. Nessa ocasião, o grupo divulgou um manifesto ao Senado, ressaltando suas preocupações, especialmente em relação aos ataques que vinham sendo feitos ao imposto seletivo. Em novembro, o Senado aprovou o texto da reforma tributária com mudanças, o que fez a PEC voltar à Câmara. Em 20 de dezembro de 2023, o Congresso promulgou a Emenda Constitucional nº 132, da reforma tributária. Também de forma histórica, foi incorporado ao texto constitucional o imposto seletivo, destinado a desincentivar, com uma maior tributação, bens ou serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.

Como a emenda aprovada apenas cria o novo arcabouço tributário, deixando a regulamentação detalhada para depois, o debate passou à fase seguinte – a das principais disputas, com a pressão do lobby se intensificando. No campo da alimentação, estava claro desde o ano passado que havia uma dupla batalha a ser travada: desonerar apenas alimentos saudáveis, na cesta básica e na alíquota reduzida, e tributar mais pesadamente alimentos não saudáveis.

Como a previsão constitucional é que a cesta básica garanta uma alimentação saudável, os pontos mais críticos de discussão eram sobre quais alimentos seriam incluídos no rol da alíquota reduzida em 60% e, principalmente, se o governo teria força e coragem para o enorme enfrentamento que seria taxar os ultraprocessados.

Por isso mesmo, o governo manteve a discussão bem fechada. Para a elaboração do projeto de lei, o Ministério da Fazenda formou dezenove grupos de trabalho, compostos apenas por representantes do próprio ministério, sob a liderança do secretário Appy, e dos entes federados. Não houve qualquer espaço formal para a participação de entidades da sociedade civil nem para os próprios ministérios da área social. A Fazenda liderou a formulação do texto e sua negociação no Legislativo, como fizera antes.

Diante desse cenário, a solução para as organizações da sociedade civil foi preparar um manifesto defendendo a sobretaxação dos ultraprocessados. Assim, em 1º de março passado, foi lançado o Manifesto por uma Reforma Tributária Saudável: Imposto Seletivo para Produtos Ultraprocessados, com dezenas de organizações signatárias e personalidades de destaque, como os médicos Drauzio Varella, Gonzalo Vecina Neto, Daniel Becker e Carlos Monteiro, as chefs de cozinha e apresentadoras de televisão Bela Gil e Rita Lobo, os economistas Eduardo Moreira e Monica de Bolle, e os ex-ministros da Saúde Arthur Chioro, José Gomes Temporão e Luiz Henrique Mandetta. O manifesto teve grande repercussão e colocou pressão no governo para enfrentar a pauta.

A indústria, por sua vez, decidiu mobilizar toda sua força sobre os parlamentares e antecipar a disputa no Congresso. Com dificuldade de influir no Executivo, orquestrou a articulação de 23 frentes parlamentares, lideradas pela Frente Parlamentar Mista do Empreendedorismo, coordenada pelo deputado Joaquim Passarinho (PL-PA), que, de forma provocativa ao governo, replicaram os dezenove grupos de trabalho do Ministério da Fazenda, com vistas a apresentar projetos de lei complementar de sua própria lavra.

Em tom de ameaça, o coordenador da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputado Pedro Lupion (PP-PR), afirmou sobre o objetivo da iniciativa: “É importante ressaltar que o deputado Aguinaldo Ribeiro, relator da reforma tributária, tenha ciência muito clara de que o que não for de acordo com isso tudo que vamos elaborar aqui terá muita dificuldade de tramitar na Casa.” O resultado desse processo foi a apresentação de treze projetos de lei complementar, sendo que três afetavam a área de alimentação: um de cesta básica, um de alíquota reduzida e um do imposto seletivo.

Perfeitamente alinhados com os interesses do setor privado, os projetos de lei previam ultraprocessados na cesta básica (inclusive biscoitos, bolos e misturas prontas) e definiam também que todos os alimentos que não estivessem na cesta básica, sem exceção, deveriam ter a alíquota reduzida, o que significaria pagar apenas 10% de imposto. Essa medida poderia levar a um desastre sanitário, considerando a redução de preço que provocaria em muitos alimentos não saudáveis.

Em 5 de março, o governo publicou um decreto regulamentando a composição da cesta básica. A proposta, conduzida pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, partiu do Guia Alimentar para a População Brasileira e definiu dez grupos de alimentos para a cesta básica, todos in natura ou minimamente processados: feijões; cereais; raízes e tubérculos; legumes e verduras; frutas; castanhas e nozes; carnes e ovos; leites e queijos; açúcares, sal, óleo e gorduras; café, chá, mate e especiarias. Embora, do ponto de vista legal, a definição dos produtos da cesta básica na reforma tributária deva ser feita por um projeto de lei complementar, não há dúvidas de que um decreto como esse, vindo do próprio governo, teria peso na formulação em processo no Ministério da Fazenda.

Em resposta à iniciativa governamental, a Abras entregou ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, no início de abril, uma proposta de cesta básica que gerou polêmica por incluir itens supérfluos – lagosta, foie gras, ostras – dentre aqueles elegíveis a integrar o rol de produtos isentos de impostos. A inclusão desses produtos pela Abras serviu como boi de piranha: deixou em segundo plano que a proposta também inseria ultraprocessados, tanto na cesta básica como na alíquota reduzida, além da absurda inclusão de bebidas alcoólicas entre os produtos com desconto na alíquota. Quatro organizações da sociedade civil (ACT, Idec, Instituto Desiderata e FIAN Brasil) reagiram, divulgando uma nota pública com críticas tanto a essa iniciativa como aos projetos de lei apresentados sob patrocínio da indústria.

Com o debate atingindo alta temperatura e na iminência da apresentação da proposta feita pelo Ministério da Fazenda, a indústria de alimentos resolveu dar outra demonstração de força. Criou a União Nacional da Cadeia Produtiva de Alimentos e Bebidas Não Alcoólicas (Uncab). Na prática, o movimento visa formar um poderoso grupo de lobby para brecar quaisquer iniciativas de regulação dos ultraprocessados na reforma tributária. Uma declaração do presidente da ABIA deixou tudo mais claro: “[A Uncab] é o maior setor econômico do Brasil. Entretanto, vem sendo muito atacada e, neste momento de regulamentação da reforma tributária, há ONGs e grupos de pressão pedindo o aumento de impostos sobre os alimentos chamados de ‘ultraprocessados’, um conceito que não encontra consenso científico nacional ou internacional. […] Não faz sentido ter nem um cidadão brasileiro passando fome. É constrangedor que venham pedir aumento de imposto sobre qualquer tipo de alimento.” Uma matéria da Agência Pública mostrou o amplo acesso da Uncab à cúpula do Executivo e do Legislativo. Sua força também aparece nos dados: com faturamento anual superior a 1 trilhão de reais, o setor responde por praticamente 11% do PIB do país e emprega quase 10 milhões de trabalhadores diretos.

Em 24 de abril, o Ministério da Fazenda finalmente enviou ao Congresso o projeto de lei complementar que regulamenta a reforma tributária – o PLP 68/2024. A proposta traz um grande avanço com a definição de uma nova Cesta Básica Nacional de Alimentos, composta majoritariamente por produtos saudáveis – a exceção mais gritante é a margarina, um produto ultraprocessado. A lista de alimentos com alíquota reduzida buscou seguir a mesma lógica, mas contém mais ultraprocessados, como lácteos e massas instantâneas.

A nota mais amarga da proposta apareceu na lista do imposto seletivo. Além dos produtos óbvios, como tabaco e álcool, o governo optou por tributar apenas os refrigerantes e as águas saborizadas. A timidez da decisão da proposta estampou a primeira página do jornal O Estado de S. Paulo, que trouxe a seguinte manchete no dia seguinte: “Governo livra alimentos ultraprocessados de ‘imposto do pecado’ e inclui veículos.” Houve discussões dentro do governo sobre uma proposta mais arrojada, que incluísse a totalidade dos ultraprocessados. Contudo, prevaleceu a avaliação política de que esse seria um enfrentamento difícil para o governo na atual conjuntura. Perdem a saúde individual e pública. O cidadão perde o direito a uma alimentação saudável.

De alguma forma, o governo pelo menos deu um passo importante ao tributar algumas bebidas ultraprocessadas adoçadas — o que permite abrir futuramente um debate no Congresso sobre a ampliação dessa lista. De fato, a maior parte dos países e regiões — hoje já são mais de 97 — optou por começar criando um tributo extra para as bebidas adoçadas. No entanto, todos contemplam, além dos refrigerantes, outras bebidas, como sucos de caixinha, isotônicos e achocolatados. Mesmo nesse cenário, não há dúvidas, como admitiu o próprio setor de refrigerantes, de que eles foram pegos de surpresa, pois a indústria de alimentos e bebidas não esperava qualquer proposta de taxação extra.

A Câmara dos Deputados demorou a iniciar a apreciação do projeto do Ministério da Fazenda. Após seu início, as discussões não levaram nem dois meses no total. Os lobbies da indústria de alimentos, do agronegócio e dos supermercados atuaram com todas as garras para expandir a cesta básica, a lista com alíquota reduzida, e retirar os refrigerantes do imposto seletivo. Pouco a pouco, o debate se afunilou para a defesa da inclusão da proteína animal na cesta básica e a exclusão dos refrigerantes do seletivo.

A Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas Não Alcoólicas (Abir) encomendou pesquisa de opinião para mostrar que a população é majoritariamente contra o aumento na taxação de refrigerantes e refrescos. Várias associações fizeram críticas públicas à proposta governamental, a União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar (Uncab) pagou anúncios na imprensa contra a medida, e a atuação dos lobbies no Congresso foi intensificada.

Analisando apenas duas das dezenas de audiências públicas na Câmara — uma sobre cesta básica e outra sobre imposto seletivo —, o imposto seletivo sobre os refrigerantes foi atacado por pesquisadores da Fundação Getulio Vargas (FGV) e do Insper, pela União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (Única), pela Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), pela Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg) e pela Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil (CACB).

Na primeira quinzena de julho, a Câmara aprovou em plenário a regulamentação da reforma tributária. A tributação dos refrigerantes foi mantida graças à intensa pressão da sociedade civil e de parlamentares alinhados à pauta da saúde. Apesar das investidas da indústria para incluir mais produtos, inclusive ultraprocessados, na alíquota reduzida e na cesta básica, não houve praticamente mudanças na proposta enviada pelo Executivo. A principal alteração ocorreu já no final do processo de votação, quando o relator da matéria no plenário, o deputado Reginaldo Lopes, anunciou, para deleite geral dos congressistas e do presidente Lula, que as carnes seriam incluídas na cesta básica. A inclusão representou uma vitória do setor de supermercados e do agronegócio.

A reforma tributária agora está no Senado, que iniciou a apreciação do texto depois das eleições municipais. Se o texto for mantido como está, o Brasil de 2025 será melhor que o Brasil de 2024 no direito à alimentação adequada. Com uma cesta básica saudável e uma lista com alíquota reduzida que também segue o Guia Alimentar para a População Brasileira — considerado um dos melhores do mundo —, o Brasil vai garantir mais acessibilidade a alimentos saudáveis para a população. É um grande avanço para o combate à fome e para o enfrentamento da obesidade e de outras doenças crônicas não transmissíveis.

O Senado tem a oportunidade, no entanto, de aprimorar o texto da Câmara e incluir mais ultraprocessados no imposto seletivo ou, ao menos, corrigir o texto atual, garantindo, à luz da experiência internacional, que todas as bebidas adoçadas sejam contempladas, desestimulando o consumo desses produtos nocivos. Além de beneficiar a saúde, a medida ajudaria a compensar a expansão da cesta básica, reduzindo a alíquota geral da economia. Ganhariam a saúde e a economia como um todo. Claro que isso depende também da definição das alíquotas do imposto seletivo, o que só ocorrerá no próximo ano, em novo projeto de lei a ser enviado pelo Executivo.

Há tempos não se via uma atuação tão articulada de um lobby no país como o da indústria de alimentos na reforma tributária. A assimetria de recursos e poder com relação às entidades da sociedade civil é enorme. Enquanto essas entidades muitas vezes não conseguem alcançar os altos escalões governamentais, representantes da indústria alimentícia tiveram 103 reuniões com funcionários do primeiro escalão do governo entre janeiro e outubro de 2023, como mostrou uma análise da agência Fiquem Sabendo.

Apesar das dificuldades, o jogo virou, de alguma forma. As evidências científicas são crescentes e contundentes, as experiências internacionais de regulação e tributação dos ultraprocessados se avolumam, e as forças sociais e políticas engajadas na agenda da alimentação saudável ganham cada vez mais influência. A conexão do tema dos sistemas alimentares com a questão ambiental também é agora incontornável.

O avanço do debate pode ser constatado pelas respostas estatais ao problema dos ultraprocessados. Depois que a Anvisa aplicou novas regras à rotulagem dos alimentos, voltou a ser discutida a regulação da publicidade de ultraprocessados. O tema chegou ao Supremo Tribunal Federal. Em maio passado, o ministro Cristiano Zanin, relator do caso da regulação da publicidade, deu uma decisão favorável à Anvisa, sendo seguido pelo ministro Alexandre de Moraes, recolocando o assunto em pauta.

A economista Maria da Conceição Tavares (1930-2024) dizia que uma economia que não se preocupa com justiça social é uma economia que condena os povos ao desemprego e à miséria. Pode-se acrescentar que uma economia que não leva em conta seu papel como incentivadora da saúde é uma economia que condena os povos à doença e à morte prematura. Será uma vitória do Brasil se os senadores e as demais lideranças políticas tiverem a coragem e a sabedoria de fazer da reforma um tributo à saúde e à vida.

Publicado na Revista Piauí
https://piaui.folha.uol.com.br/o-lobby-dos-salgadinhos/
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/como-a-industria-tem-atuado-na-reforma-tributaria-para-baratear-os-produtos-ultraprocessados/