Desastres batem recorde, mas verba para Defesa Civil é a menor em 14 anos

Por Camille Lichotti no TAB | 10/11/2023

RIO DE JANEIRO | Ondas gigantes engolem a orla do Rio. Um vendaval com força de furacão deixa parte de São Paulo às escuras. Tempestades de areia encobrem o céu de Manaus. Enchentes destroem ruas inteiras no Rio Grande do Sul, enquanto rios amazônicos secam quase que de uma vez só.

O Brasil nunca foi tão afetado por desastres naturais como em 2023. Até o início de novembro, 1.958 cidades — ou 1 em cada 3 municípios — entraram em situação de emergência, segundo dados do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil.

O monitoramento dos desastres melhorou com o tempo, mas a proporção mostra que os eventos climáticos estão mais extremos.

Em 2013, do total de desastres naturais registrados pelos municípios, 23% foram reconhecidos como “situação de emergência” pelo governo, por sua gravidade e impacto. Em 2023, foram 53%.

O fenômeno é mundial, mas o Brasil, acostumado a crer nas benesses do clima, não se adaptou para os efeitos das mudanças climáticas – mesmo com todos os alertas da comunidade científica.

Apesar das previsões, dos sucessivos desastres e de sua localização vulnerável no mapa, o país não está preparado para enfrentar a crise do clima.

O orçamento destinado à gestão de riscos e desastres em 2023 foi o menor em 14 anos, segundo levantamento da associação Contas Abertas. A maior fatia foi destinada ao Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, que conta com a Defesa Civil para atendimento dos municípios atingidos por desastres naturais – não para a prevenção.

De 2010 a 2022, do valor total autorizado em orçamento (R$ 64,1 bilhões), 63% foram efetivamente pagos (R$ 40,7 bilhões), justamente porque faltam projetos para gestão de riscos.

“Não temos audiências públicas para discutir a prevenção e redução de risco de desastres”, diz Victor Marchezini, pesquisador do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais).

Para piorar, o país ainda não tem um plano nacional de prevenção e gestão de risco de desastres para apoiar estados e municípios.

O foco hoje é desenvolver ações quando a catástrofe já está dada. “O Brasil sequer está preparado para os eventos climáticos considerados normais, muito menos para os extremos”, resume Victor.

Menos de 10% das cidades têm plano de obras e serviços para redução de risco de desastres. Somente 2% têm alguma lei específica que contempla prevenção de enchentes.

No início de novembro, um ciclone atravessou a região Sudeste e estacionou no na costa do Rio de Janeiro. O resultado foram ondas de mais de três metros que atravessaram a orla e arrastaram os banhistas. “Foi um dia de horror e tristeza”, diz Cristiane Pires, 47, dona de uma barraca na praia. “O mar levou tudo.”

Ela disse ao UOL que o alerta de ondas gigantes emitido pela Marinha não chegou a quem estava na praia, nem pelas redes sociais dos órgãos públicos.

Um adolescente de 16 anos, levado pela correnteza, foi encontrado morto no mar.

No mesmo fim de semana, esse ciclone passou por São Paulo, derrubando árvores, muros e postes de energia elétrica. Mais de 2 milhões de paulistanos ficaram sem luz — e milhares de imóveis continuaram no escuro por dias.

O despreparo para enfrentar eventos extremos ainda levou à morte de sete pessoas na maior cidade da América Latina.

Feito o estrago, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) disse que o vendaval foi uma situação “muito fora de contexto”.

Mas desde o início do ano os pesquisadores alertavam que os efeitos deste El Niño seriam mais intensos — e a sequência de desastres em outras regiões do país confirmavam o prognóstico.

“O nome disso é falta de planejamento”, avalia Pedro Luis Côrtes, professor de ciência ambiental da USP. “São Paulo teve pelo menos oito meses para preparar instalações urbanas, mas o trabalho preventivo não foi feito. É triste porque isso tudo estava previsto.”

Cortês cita medidas como a avaliação e poda corretiva de árvores, mapeamento de áreas de risco, desobstrução dos canais fluviais e aterramento de fios, especialmente próximo a prédios estratégicos, como hospitais.

“Não se negocia com o clima. Tudo o que podemos fazer é adaptar as cidades para reduzir o impacto, mas não estamos fazendo”, afirma ele. “Eu não sei o que mais precisa acontecer para alertar sobre a emergência climática.”

Em vez de avançar, São Paulo retrocedeu nas políticas climáticas. Uma pesquisa feita este ano com base nos dados do IBGE mostrou que, entre 2013 e 2020, houve redução da capacidade da Região Metropolitana de São Paulo de enfrentar as mudanças climáticas – tanto na área de gestão de risco quanto na de política ambiental.

Nas 39 cidades participantes, o estudo concluiu que houve deterioração em todas as áreas analisadas, desde aplicação de recursos ao desenvolvimento de projetos.

Preparar-se envolve mais que o monitoramento do nível de chuvas ou de rios. “É preciso pensar em rotas de fuga, condições para evacuação das pessoas, comunicação clara de risco etc”, diz Marchezini. “Não basta dizer que as pessoas foram alertadas para chuva forte. Elas precisam saber o que fazer.”

Caos Climatico, o despreparo das cidades brasileiras

No fim de agosto, o pescador aposentado Daltro Dias de Andrade, 74, viu os alertas vermelhos da Defesa Civil de Porto Alegre prevendo chuva forte e ciclone. Ele mora na ilha da Pintada, numa comunidade às margens do rio Jacuí.

“Pensei que era para levantar os móveis porque ia vir enchente. Fiz isso e fiquei em casa esperando”, relata ele. “Não tinha mais o que fazer. Eu iria para onde?”.

Às duas da manhã, o rio virou mar com ondas de 1,5 metro. A água era tão forte que ergueu a casa pelo assoalho. “Minha cabeça quase batia no teto”, relata Daltro, que tentou ligar para a Defesa Civil, mas não tinha sinal de celular.

Ele tirou da cama a esposa, que tem dificuldade de mobilidade, e a deixou na porta da casa para que os vizinhos a socorressem.

Na segunda vez que a água sacudiu o chão, o assoalho rachou ao bater no pilar de sustentação, e Daltro viu sua casa se desfazer de uma só vez. “Minha vida ruiu em 15 minutos”, diz, apontando para os escombros.

Daltro Dias de Andrade, morador da ilha da Pintada, em Porto Alegre, perdeu a casa com as chuvas do fim de agosto
Daltro Dias de Andrade, morador da ilha da Pintada, em Porto Alegre, perdeu a casa com as chuvas do fim de agosto [Imagem: Carlos Macedo/UOL]

Daltro ainda não recebeu o aluguel social prometido pela prefeitura de Porto Alegre e está morando com o filho.

Quando a comunidade da ilha ficou desabrigada, cerca de cem pessoas buscaram abrigo na igreja, numa parte mais alta da região.

Na rua, as famílias vagavam sem saber para onde ir. Não há abrigos de segurança e os helicópteros de resgate só chegaram na manhã seguinte.

O padre Rudimar Dal’Asta, 53, que abrigou dezenas de desalojados por cerca de um mês, se lembra dos gritos de socorro no meio da madrugada.

“Esse desastre abalou minha fé”, diz o padre. “Eu ainda não consigo entender por que isso aconteceu com as pessoas que já não tinham quase nada.”

O padre Rudimar Dal'Asta, que abrigou desalojados na igreja por cerca de um mês, em Porto Alegre
O padre Rudimar Dal’Asta, que abrigou desalojados na igreja por cerca de um mês, em Porto Alegre [Imagem: Carlos Macedo/UOL]

O aquecimento global está se aproximando do ponto de não retorno. Em setembro, a temperatura da Terra ficou 1,8°C acima do nível pré-industrial. Em outubro, 1,7°C. O limite máximo estabelecido pela comunidade científica para termos condições de mitigar os efeitos da crise é de 1,5°C.

A partir dos 2°C, entraremos em “território desconhecido”, como definiu a Organização Mundial Meteorológica.

Cada elevação decimal repercute de forma não linear na frequência e na intensidade das ondas de calor. Significa dizer que mesmo um aumento pequeno pode dobrar ou triplicar a ocorrência e intensidade dos fenômenos.

E o El Niño, que aquece as águas do Oceano Pacífico e muda o regime de chuvas do Brasil, nem sequer chegou ao ápice. Projeções mostram que o fenômeno pode durar até meados de 2024 e alcançar o pico no próximo verão, acentuando a seca na região Norte e aumentando as chuvas no Sul e Sudeste, num período já marcado por temporais.

Ou seja: vem seca, chuva, enchente, vendaval e ciclone mais fortes nos próximos meses.

Julho de 2023 foi o mês mais quente já registrado no planeta. O Brasil, por sua vez, teve um inverno de temperaturas recordes e enfrenta ondas de calor intensas, antes mesmo de o verão começar. No próximo fim de semana, as previsões do Inmet e da MetSul indicam termômetros acima dos 40°C em todas as regiões do país.

A nota da MetSul afirma que esta “pode ser a mais intensa [onda de calor] já registrada no Brasil em valores de temperatura máxima”, com “marcas 10° C a 15° C acima da climatologia histórica em algumas tardes”.

Segundo os especialistas, estamos diante do que pode ser o pior verão de nossa história — até agora.

Publicado no TAB/UOL
https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2023/11/10/crise-do-clima-esta-ai-por-que-nao-estamos-preparados.htm