Blog do IFZ | 18/12/2025
Nas últimas semanas, a Espanha ganhou projeção no debate internacional sobre políticas públicas de alimentação. Medidas regulatórias anunciadas pelo governo, voltadas à restrição de alimentos ultraprocessados em instituições públicas, recolocaram no centro da agenda política um tema que vinha sendo construído de forma progressiva, com base técnica e forte sensibilidade social. Longe de se limitarem a atos administrativos isolados, essas iniciativas refletem um processo de amadurecimento coletivo diante de um problema de saúde pública amplamente sustentado por evidências científicas.
As decisões recentes funcionam como ponto de partida para a construção de um panorama mais abrangente. Ao inserir as novas normas no contexto de debates parlamentares, mobilizações sociais e acúmulo de conhecimento científico, busca-se evidenciar como a Espanha vem formulando uma resposta que articula regulação estatal, participação social e orientação pública, não como a simples promulgação de um decreto, mas como parte de um esforço compartilhado para reorganizar o ambiente alimentar do país.
Ao longo das últimas três décadas, a alimentação cotidiana na Espanha passou por uma transformação profunda e contínua. Um padrão historicamente associado a refeições preparadas com alimentos frescos, em cozinhas domésticas ou coletivas, foi progressivamente acompanhado por produtos industriais de alta palatabilidade, longa vida útil e baixo valor nutricional. Essa mudança não se explica por escolhas individuais tomadas em isolamento. Ela resulta de alterações econômicas, culturais e comerciais que moldaram o ambiente alimentar como um todo. É justamente esse ambiente, e não a responsabilização de consumidores isolados, que se tornou o foco de uma resposta coletiva que envolve Estado, parlamento, instituições públicas e sociedade civil.
Um diagnóstico respaldado pela ciência
O ponto de partida dessa mobilização é o acúmulo consistente de evidências científicas. Um amplo conjunto de estudos reunidos pela revista The Lancet indica que a Espanha figura entre os países onde mais cresceu a participação dos alimentos ultraprocessados na dieta. Em cerca de trinta anos, a proporção de calorias provenientes desses produtos aumentou de aproximadamente 11% para mais de 30% do total diário. Trata-se de uma mudança estrutural na forma de se alimentar, associada a maior risco de obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares, enfermidades renais, transtornos depressivos e aumento da mortalidade precoce.
Os próprios pesquisadores ressaltam limites metodológicos e a necessidade de aprofundar investigações causais. Ainda assim, o corpo de evidências disponível é considerado suficiente para sustentar políticas públicas de caráter preventivo. A literatura científica mostra que os efeitos do consumo elevado de ultraprocessados vão além do perfil nutricional. Esses produtos tendem a substituir alimentos frescos, empobrecer a dieta, ampliar a exposição a aditivos e intensificar desigualdades sociais, uma vez que os grupos de menor renda permanecem mais expostos a ambientes alimentares degradados e a estratégias de publicidade persistentes.
O Estado como organizador do ambiente alimentar
É nesse cenário que o governo espanhol decidiu intervir de maneira direta nos espaços sob sua responsabilidade. Um Real Decreto elaborado pelo Ministério dos Direitos Sociais, Consumo e Agenda 2030 estabelece limites claros à oferta de ultraprocessados e frituras em centros públicos com pensão completa ou regime residencial. Hospitais, residências de idosos, centros de atenção a pessoas dependentes, instituições de acolhimento, além de museus, bibliotecas, universidades e centros esportivos, passam a adotar critérios nutricionais mínimos.
A norma determina que, nesses ambientes, os ultraprocessados e as frituras não poderão ultrapassar duas porções semanais nas refeições principais e apenas uma vez por semana em cafés da manhã ou lanches. No caso da alimentação infantil, a restrição é mais rigorosa, com a exclusão desses produtos dos cardápios. A medida também alcança cafeterias e refeitórios abertos ao público dentro de hospitais, reconhecendo que esses espaços influenciam hábitos muito além do período de internação.
O propósito não se limita à organização dos cardápios. Ao regular a oferta de alimentos em instituições públicas, o Estado estabelece referências culturais e simbólicas, contribuindo para que escolhas mais saudáveis se tornem simples, acessíveis e socialmente valorizadas.
Congresso, impostos e regulação econômica
O debate se estende ao âmbito legislativo. No Congresso espanhol, avançam discussões sobre instrumentos fiscais e regulatórios destinados a reduzir o consumo de ultraprocessados e, simultaneamente, favorecer o acesso a alimentos frescos. Inspiradas em recomendações internacionais, essas iniciativas incluem a possibilidade de impostos específicos sobre produtos com elevado teor de açúcar, gorduras saturadas e sal, além de restrições mais severas à publicidade, sobretudo aquela direcionada à infância.
Elemento central dessas propostas é o destino da arrecadação. Os tributos não são concebidos apenas como mecanismo de desestímulo, mas como ferramenta redistributiva, capaz de financiar políticas que tornem frutas, verduras e alimentos minimamente processados mais acessíveis às famílias de menor renda. Reconhece-se, assim, que a saúde alimentar está diretamente vinculada às condições materiais de vida e que a dinâmica de mercado, sem regulação, tende a aprofundar desigualdades.
A sociedade civil como força persistente
Paralelamente às iniciativas governamentais, a sociedade espanhola desempenha um papel contínuo e estruturante. Organizações de saúde pública, associações de consumidores, profissionais da educação e coletivos dedicados à infância mantêm uma atuação constante em defesa de ambientes alimentares mais protetores. Campanhas educativas, debates públicos e a defesa de rotulagens mais claras contribuíram para deslocar o tema do campo técnico para o centro da vida social.
Esses movimentos insistem em um ponto essencial. A informação é necessária, mas insuficiente. Quando crianças crescem cercadas por publicidade de ultraprocessados e quando os alimentos mais baratos são, em geral, os menos saudáveis, a liberdade de escolha torna-se limitada. A ação coletiva busca, portanto, reequilibrar esse cenário para que a decisão individual possa existir de forma concreta.
Educação, desigualdade e proteção da infância
Um dos eixos mais sensíveis desse esforço diz respeito à infância. Dados nacionais mostram que o sobrepeso e a obesidade afetam de maneira desproporcional crianças de famílias com menor renda, que também passam mais tempo expostas a telas e a conteúdos publicitários de alimentos ultraprocessados. A discussão sobre comedores escolares, qualidade nutricional dos cardápios e preço das refeições ganhou centralidade, não apenas como política alimentar, mas como estratégia de justiça social.
Nesse ponto, convergem ações de diferentes níveis de governo, das administrações locais às instâncias nacionais, em diálogo com diretrizes internacionais de saúde. A alfabetização em saúde, defendida por organismos multilaterais, aparece como complemento indispensável às medidas regulatórias, ampliando a capacidade crítica da população sem transferir a ela a responsabilidade exclusiva pelo problema.
Um esforço coletivo em construção
A resposta espanhola ao avanço dos ultraprocessados não se apresenta como solução imediata nem como campanha moralizante. Ela se constrói de forma gradual, apoiada na ciência, mediada pelo debate democrático e orientada pela compreensão de que a alimentação é um bem público. Limitar produtos em instituições, discutir impostos, rever práticas publicitárias e fortalecer a educação alimentar são partes de um mesmo desenho, voltado à proteção da saúde coletiva.
Ao deslocar o foco do indivíduo para o ambiente, a Espanha indica que enfrentar os danos associados aos ultraprocessados exige coordenação, continuidade e cuidado. Trata-se de um processo em andamento, com tensões e ajustes, mas que revela algo fundamental. Quando Estado e sociedade caminham juntos, a alimentação deixa de ser apenas uma questão privada e passa a integrar, de maneira clara, o núcleo do pacto social.
Com informações da Agência EFE, elDiario.es e elEconomista.es
