A seca e o fogo espalhados pelo País e as chuvas torrenciais no Sul estão revelando que as previsões científicas sobre os efeitos danosos do aquecimento global vão-se confirmando
Por José Giacomo Baccarin no A Terra é Redonda | 07/10/2024
Entre 2004 e 2014, de forma incipiente e incompleta, o Brasil prenunciou a possibilidade de alcançar o desenvolvimento sustentável de sua agricultura, uso da terra e manejo da vegetação natural. A tecnologia desenvolvida por décadas em centros de pesquisa, públicos e privados, e a elevação das cotações internacionais das commodities agrícolas resultaram em alto crescimento da produtividade, produção e da exportação de produtos de origem agrícola.
Ao mesmo tempo, devido à valorização cambial, pelo menos até 2011, o aumento dos preços internacionais não foi totalmente repassado para o consumidor brasileiro. Concomitantemente, o mercado de trabalho esteve aquecido e junto com programas federais de transferência de renda aumentaram a capacidade de consumo e a sensação de segurança alimentar, fazendo com que o Brasil deixasse o Mapa da Fome da FAO, em 2014.
Pelo lado ambiental, programas e ações públicas mostraram-se eficientes na detecção imediata e diminuição do desmatamento da Amazônia. Em 2004, foram desmatados 27.772 Km2 nesse bioma, valor que caiu 82%, atingindo 5.012 Km2, em 2014 (INPE, 2022). Agentes públicos, especialmente os do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), chegaram a inutilizar máquinas, equipamentos e produtos associados a crimes ambientais, além de aplicarem milhares de multas aos criminosos.
Em 2024, observa-se outra realidade, embora o Governo Federal tenha sido recuperado pelas forças políticas que governaram de 2003 a 2015. O negócio agrícola vai bem, mesmo com os preços das commodities não mantendo os valores estelares de 2020 a 2022, na pandemia da Covid 19. A retomada do crescimento econômico e o amplo alcance do Novo Bolsa Família resultaram em melhoria da segurança alimentar no Brasil, ainda que, em 2023, não tenha se repetido o nível de 2013, o melhor em todos os levantamentos do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Na área ambiental, contudo, mesmo que tenha havido redução no desmatamento da Amazônia, em 2023, quase nada de alvissareiro se vislumbra, diante do ar esfumaçado que cobre grande parte do País. As imagens chocantes de grandes rios da Amazônia secando, as ondas de calor e os focos de incêndio espalhados pelos estados trazem perplexidade e desalento, com muitos expressando a opinião de perda de controle sobre os eventos climáticos extremos. Mesmo porque há maiores dificuldades sociais e políticas para a implantação de medidas preventivas e corretivas nessa área.
A moda do noticiário recente é o fogo, mas há alguns meses foi a chuva excessiva que trouxe graves prejuízos humanos e materiais ao Rio Grande do Sul. O fato é que a seca e o fogo espalhados pelo País e as chuvas torrenciais no Sul estão revelando que as previsões científicas sobre os efeitos danosos do aquecimento global vão-se confirmando e, pior, com uma rapidez imaginada por poucos. Aponta-se o Brasil como um dos países mais afetados pelo aumento da temperatura na Terra.
Na esperança da volta das chuvas, a reação imediata de grande parte dos governantes e mesmo de membros da academia foi a de atribuir a responsabilidade dos milhares de focos de fogo espalhados no território brasileiro à ação orquestrada de uma quadrilha organizada.
Um reducionismo perigoso, pois crime, muitas vezes, dá ideia de marginalidade, em todos os sentidos do termo, de ação de uma minoria, que poderia ser contornada mediante ação policial efetiva do Estado. Na agricultura, alguns atribuem os problemas ambientais ao bando do ogronegócio, não superior a 2% do agronegócio todo.
Crimes há em abundância e devem ser combatidos com rigor, destruindo as ferramentas e máquinas dos criminosos e causando mais prejuízos ao seu bolso e patrimônio imobiliário. Mas deve-se atentar que, mesmo com bom gerenciamento, é insuficiente a capacidade orçamentária do governo para agir como bombeiro, apagando fogo e resgatando vítimas de enchentes, vendavais etc., como financiador da reconstrução de áreas afetadas por eventos extremos e como polícia ambiental.
O instinto privado de querer extrair, rapidamente e ao esgotamento, o máximo benefício na exploração de tudo o que encontra pela frente tende a predominar. Visão estratégica, mesmo que baseada apenas em análises econômicas de longo prazo, são raras. Exemplo, o governo brasileiro, em cima da hora, está solicitando que a União Europeia não barre, a partir de 2025, as importações de produtos do agronegócio brasileiro em áreas desmatadas depois de 2020.
Pode-se torcer para que se obtenha a extensão de prazo, mas deve-se reconhecer que, entre 2016 e 2022, a ação pública foi de desconsiderar tais possibilidades. Quem sabe, imaginando que a China, disparada nosso maior importador atual de alimentos, não tome atitude como da União Europeia, o que pode ser uma quimera. Abusando dos jargões antigos, o empurrar com a barriga ou sua tradução brasileira, dar um jeitinho, pode dar com “os burros n’água”.
Outro exemplo, específico para o ramo sucroenergético. Confirmando análises anteriores, em 2024, foi divulgado estudo que prevê que, devido às mudanças climáticas, com redução da frequência e quantidade de chuvas, a produção de cana-de-açúcar no Centro-Sul do Brasil (90% da produção nacional) deverá se reduzir entre 5% (cenário otimista) e 20% (cenário pessimista), nos próximos 10 anos (CNPEM, 2024). Também em 2024, cerca de 400 mil hectares de cana-de-açúcar sofreram queimadas não controladas em São Paulo. Vai se conformando, aos olhos dos leigos, o que os estudos científicos estão apontando há mais tempo. Resta saber até que ponto tais evidências estão sendo incorporadas no planejamento das empresas sucroenergéticas.
O que vem acontecendo no Brasil não decorre apenas de fatores internos. O aquecimento é global, como suas causas, e exige intervenções de mitigação por todos os países, em especial os desenvolvidos. Contudo, é importante aprofundar as discussões sobre como o Brasil contribui para o aumento da temperatura, como a sociedade vem-se posicionando em relação a isto e quais são as ações privadas e políticas públicas necessárias para seu enfrentamento.
Primeiramente, deve-se procurar quantificar o problema, o que aqui se faz com a análise da variação temporal do total e da participação dos setores econômicos na emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE). No Gráfico 1, percebe-se clara tendência de diminuição da emissão de GEE, entre o biênio 2003/04 e o quadriênio 2009/12, o melhor resultado de todo o período. Entre 2013 e 2018, a tendência foi de estabilização, em patamar levemente superior a 2009/12. Por sua vez, os últimos dois anos, 2019 e 2020, apontam para crescimento das emissões, a ser confirmado por dados mais recentes.
Gráfico 1 – Total de emissões de GEE pelos setores econômicos, em milhões de toneladas de CO2 equivalente, Brasil, 2003 a 2020.
No Gráfico 2, verifica-se que a participação dos Resíduos e de Processos Industriais e Uso dos Produtos (IPPU) mostrou-se pequena, com média no período todo de 4,5% e 5,4%, respectivamente. O setor energia apresentou posição intermediária, com média de 23,0%. Esta participação é bem menor do que se verifica no mundo todo, acima de 50% na emissão de GEE. A explicação é que, por razões naturais e históricas, o Brasil construiu uma matriz energética menos poluente, com grande participação da hidroeletricidade e de combustíveis renováveis. No mundo, há maior dependência da energia derivada da queima de derivados de petróleo e carvão mineral, não renováveis e mais poluentes.
Gráfico 2 – Participação porcentual dos setores econômicos na emissão de CO2 equivalente, Brasil, 2003 a 2020.
A grande contribuição para a emissão de GEE no Brasil vem da AFOLU (em português, agricultura, florestas e outros usos da terra), com média de 67,1%, entre 2003 e 2020. A participação média estrita da Agropecuária foi de 31,4% e tendeu a crescer de 2003 e 2012, de 14,8% para 41,0%. Em seguida houve diminuição, para 31,1%, em 2020. Mesmo em termos absolutos, a geração de GEE pela Agropecuária teve crescimento pouco expressivo, de 2,8%, de 2012 a 2020.
Quanto ao LULUCF (Uso da Terra, Mudança do Uso da Terra e Florestas), observa-se grande redução de sua participação na geração de GEE, de 72,6%, na média do biênio 2003/04, para 17,9%, no quinquênio 2010/14, em linha com a redução já vista do desmatamento da Amazônia. Após, tal participação cresceu, para 36,1%, em 2020, voltando a ser o principal gerador de GEE. Em termos absolutos, a LULUCF emitiu 284 milhões de toneladas de CO2, na média de 2010/14, valor que passou para 644 milhões de toneladas de CO2, em 2020, aumento de 127%.
Não resta dúvida que as mudanças no uso da terra, em específico o desmatamento, foi o grande responsável pelo Brasil alterar sua trajetória, de redução para elevação da emissão do GEE. É bom destacar que o desmatamento está associado, principalmente, à expansão das atividades agropecuárias, como o plantio de soja e milho e das pastagens.
A segunda preocupação é procurar entender a razão mais geral dessa inversão. Ela pode ser encontrada no campo da política, da ação governamental e de parte significativa da sociedade civil, capitaneada pelas lideranças do agronegócio. Os governos de Michel Temer e, mais fortemente, de Jair Bolsonaro investiram forte e eficazmente contra a legislação e a ação pública de proteção ambiental. Milhares de regulamentações e multas foram anuladas, liberou-se a comercialização de madeira apreendida em ações públicas contra o desmatamento, diminuiu-se o efetivo de funcionários atuando na área ambiental.
Em nenhum momento Jair Bolsonaro, enquanto presidente, se avexou em contrariar as evidências científicas e questionar o fato e as consequências do aquecimento global. Teve apoio explícito de bem mais que 2% dos ruralistas, que chegaram a comemorar, em 2019, o dia do fogo. Mais grave foi a conivência ou a omissão das lideranças mais expressivas do agronegócio. Seu silêncio foi ensurdecedor, talvez inebriadas pelos lucros exorbitantes obtidos na pandemia da Covid 19.
Momento este de insustentabilidade plena, preços agropecuários lá em cima, comida cara e insegurança alimentar atingindo a maioria da população brasileira, destruição ambiental em expansão. Aliás, o defensor do efeito negativo duplo, literal e figuradamente, da boiada sobre o ambiente, Ricardo Salles, foi agraciado por exatos 440.918 ou 2,7% dos votos dos paulistas para a Câmara dos Deputados. Um apoio generalizado na elite ruralista de São Paulo.
O terceiro ponto diz respeito às possibilidades de se escapar deste clima infernal. De pronto, é necessário se apostar e trabalhar para que no ambiente social haja mais pessoas e instituições se mobilizando em favor da defesa do ambiente e que as cobranças sobre o agronegócio como um todo aumentem. É possível que entre as suas lideranças haja quem respeite a ciência e se preocupe com as consequências econômicas negativas do aquecimento global. Mas, elas estão na moita e não se manifestam contra a enxurrada de decisões legislativas e de executivos estaduais de desregulamentação e descaso com o meio ambiente.
No campo da tecnologia agrícola, há muitas pesquisas já desenvolvidas que mostram possibilidades de cultivos e manejos de rebanho menos emissoras de GEE. O Governo Federal, através da EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e no exercício de políticas agrícolas, como da assistência técnica e crédito rural, pode trabalhar com o indutor daquelas tecnologias.
Outra ação diz respeito à internalização privada dos custos e da responsabilidade da prevenção e combate às consequências, como o fogo, do aquecimento global. Um exemplo claro e atual pode ser desenvolvido para o estado de São Paulo. Fora as regiões mais orientais, a cana-de-açúcar domina o território paulista. Na Região Administrativa de Ribeirão Preto, à semelhança de outras regiões, essa lavoura ocupa 70% da área destinada a todas as lavouras, às florestas plantadas e às pastagens.
As usinas ou agroindústrias sucroenergéticas mantêm sob sua administração direta 60% dos canaviais, plantados em terras próprias, 20%, e arrendadas de pequenos, médios e mesmos grandes proprietários, 80%. Os outros 40% dos canaviais estão nas mãos de grandes fornecedores, normalmente com mais de 1.000 hectares plantados.
Tal concentração/domínio territorial veio acompanhado de vantagens privadas, em especial a redução do custo médio de produção da cana-de-açúcar e de seus derivados. Inesperada e contraditoriamente, após a substituição massiva da colheita manual de cana queimada (de forma controlada) pela colheita mecânica de cana crua, as usinas se mostraram despreparadas para controlar o fogo aleatório em seus canaviais.
A maior delas, reconhecida pela capacidade gerencial e tecnológica, reportou a queima de 20 mil hectares de seu canavial. Manifestou-se uma externalidade extremamente negativa, que atingiu as parcas áreas de reserva florestal, a fauna, as cidades e as pessoas, acometidas de agravos respiratórios. Antes (ou pelo menos junto) de querer financiar os estragos privados provocados pelo fogo, o Estado deveria exigir que cada usina apresentasse um plano de contenção do fogo na área sob seu domínio, envolvendo as reservas florestais e a área dos fornecedores.
Certamente, pode-se pensar em atitudes semelhantes para outros complexos agroindustriais espalhados pelo Brasil. E ir adiante, usar dos instrumentos legais existentes e criar novos para que se exijam reparos à vegetação natural, se desaproprie (descontadas as multas por crimes ambientais) ou mesmo se exproprie áreas em que as queimadas tenham caráter doloso.
Ainda que extremamente necessário, o papel governamental de bombeiro não é suficiente. A ação pública federal deve reforçar as ações de controle e combate ao desmatamento, que já deu certo na Amazônia e deve ser estendido para outros biomas, em especial os Cerrados e o Pantanal. Escorregando para a pieguice, é bom se afirmar que tentar prevenir é melhor do combater o fogo.
José Giacomo Baccarin é professor na Unesp; de economia agrária e políticas agrícolas nos campus de Jaboticabal, na graduação, e de Rio Claro, na pós-graduação em geografia e membro do Instituto Fome Zero
Referências
BRASIL (MCTI – Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações). Estimativas anuais de emissão de gases de efeitos estufa no Brasil. Brasília: MCTI, 6ª. edição, 2022.
CNPEM (Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais). Produção de cana-de-açúcar pode cair 20% nos próximos 10 anos devido a mudanças climáticas. Disponível em https://cnpem.br/producao-cana-acucar-pode-cair-20/.
INPE (Instituto Nacional de Pesquisa Espacial). PRODES Amazônia – Monitoramento do desmatamento da Floresta Amazônica Brasileira por satélite. Disponível em http://www.obt.inpe.br/OBT/assuntos/programas/amazonia/prodes
Publicado originalmente no A Terra é Redonda
https://aterraeredonda.com.br/fogo-e-clima/