Oficial de Saúde e Nutrição do Unicef em Manaus afirma que o Amazonas, assim como o Brasil, saíram do Mapa da Fome, mas ainda há territórios com alto índice de insegurança alimentar, inclusive no estado
Por Jhonny Lima no A Crítica | 05/10/2025
A segurança alimentar foi o tema central do 7º Fórum de Políticas Públicas da Saúde da Infância, realizado pelo Instituto Infância Saudável (Infinis), organização da Fundação José Luiz Setúbal, que aconteceu esta semana na Pinacoteca de São Paulo (SP), reunindo especialistas, autoridades nacionais, acadêmicos e representantes do terceiro setor, vozes conhecedoras do assunto no Brasil, em especial sobre a região amazônica.
Dentre as temáticas abordadas, destacou-se a importância de o Brasil ter saído do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU). Além disso, pontos importantes relacionados ao tema no Brasil, como o cenário de segurança alimentar no pós-pandemia, a questão da alimentação nas escolas e em comunidades tradicionais na Amazônia, além do desafio da obesidade e da desnutrição no país, foram debatidos.
Mas será que a saída do Mapa da Fome também reflete a realidade na região amazônica, com tantos desafios e realidades distintas? Para a oficial de Saúde e Nutrição do Unicef no escritório de Manaus, Neideana Ribeiro, a realidade é bem diferente, principalmente em áreas mais distantes das cidades-polo e que se agravou devido às duas últimas grandes estiagens (2023 e 2024). Ela foi uma das participantes da mesa de conversas sobre segurança alimentar das crianças na Amazônia e conversou com exclusividade com A CRÍTICA após o evento.
A ONU divulgou em julho que o Brasil saiu do Mapa da Fome. Na Amazônia, isso corresponde, de fato, aos dados levantados pela ONU?
Os dados trazem esse olhar para a questão da segurança e insegurança alimentar. O Brasil sai do Mapa da Fome, mas a região Norte ainda é muito vulnerabilizada. É onde conseguimos ver que os indicadores de insegurança alimentar ainda são altos. Na região Norte, no Amazonas, como apresentamos, mais de 5 a 6% dos domicílios têm insegurança alimentar nos três níveis: grave, leve e moderada. Isso ainda exige um trabalho que precisa ser pensado de forma muito conjunta, para resolver a questão da insegurança alimentar no Amazonas. Vivemos também um momento de transição, tanto em relação à desnutrição quanto à obesidade. O Amazonas é um dos estados com a maior carência de micronutrientes do Brasil, infelizmente.
Na sua fala, durante a mesa de conversa, a senhora comentou que parte do reflexo da insegurança alimentar no Amazonas é decorrente dos efeitos climáticos, da estiagem severa, da longa distância e do isolamento de comunidades. Isso influenciou no aumento da insegurança alimentar na região, contrapondo o Mapa da Fome?
Acho que o ponto de atenção é que isso pode agravar ainda mais. Então, os dados mostram que o Amazonas saiu do Mapa da Fome, sim. Mas ainda há territórios com percentual significativo de famílias em insegurança alimentar. E isso pode se agravar em razão de uma estiagem severa. As nossas estradas são os rios. Como conseguimos levar alimento a determinadas comunidades, em determinados municípios, se não temos acesso? É importante pensar em estratégias para mitigar isso ao longo dos anos.

Neideana Ribeiro atua como Especialista Sênior Expert Unicef
Aqui na nossa região, quais as áreas em que o problema de insegurança alimentar é mais acentuado? A escola pública tem um papel fundamental no combate à desnutrição e à insegurança alimentar. Como a senhora avalia a alimentação escolar em sua efetividade?
Há todo um movimento em nível nacional, estadual e municipal para a diversidade alimentar e a regionalização da merenda escolar. É necessário que haja um trabalho de educação nutricional, tanto com a comunidade escolar quanto com os alunos, para que aquela alimentação que for servida possa ser bem aceita. Quando há escassez de alimentos, a alimentação no ambiente escolar precisa ser garantida. Para muitos, o ambiente escolar é o local onde fazem sua refeição principal. Se regionalizamos essa alimentação, respeitando a cultura alimentar de cada território, isso traz um ganho para o bem-estar da criança, para o ganho de peso, para o desenvolvimento infantil e, principalmente, para o desenvolvimento neurológico e afetivo. O Unicef está trabalhando nos 62 municípios — 61 do interior do Amazonas — para implantar leis ou decretos de alimentação saudável que garantam, por exemplo, que os 30% de recursos destinados à compra de merenda escolar sejam usados em alimentos regionais, culturalmente aceitos, tanto em sua forma de preparo quanto nos ingredientes. A alimentação escolar saudável é fundamental para a melhoria dos indicadores, principalmente na questão da mortalidade infantil.
Foi falado durante a palestra sobre a importância dos benefícios sociais no combate à insegurança alimentar, e sobre o deslocamento dos ribeirinhos e populações indígenas para as cidades-polo para comprar alimentos. Na sua avaliação, a senhora acredita que esses benefícios, como, por exemplo, o Bolsa Família, têm sido eficazes no combate à insegurança alimentar?
O benefício do Bolsa Família traz um ganho para a comunidade e para a família, porque, além da oferta de alimento, ele dá poder decisório: a família escolhe o que comprar. É preciso, no entanto, orientar. As políticas públicas existem para isso. O programa do governo federal foi pensado para dar autonomia às famílias. Não é o gestor quem deve decidir o que é melhor, mas sim o beneficiário. Por isso, é necessário orientar como utilizar o benefício. E que os municípios possam ofertar, além do benefício, outras oportunidades para que, no menor tempo possível, a família deixe de depender dele e consiga um trabalho que garanta dignidade. Estudos mostram que o Bolsa Família reduziu bastante a mortalidade infantil, trouxe dignidade às famílias e contribuiu para a saída do Brasil do Mapa da Fome, ao garantir recursos e autonomia de compra.
Além desses benefícios, há algo mais que possa ser feito pelos nossos representantes em Brasília? O que poderia ser discutido no Congresso para beneficiar essas famílias que vivem em situação de insegurança alimentar?
É preciso pensar em políticas eficazes para cada território, para cada realidade. Qual o custo de uma cesta básica no Sul do Brasil? E no Norte? O que vimos é que o preço aumentou de forma exponencial. O frango que era vendido por um valor, triplicou. Como pensar em políticas públicas que garantam segurança no acesso ao alimento em períodos de estiagem, que infelizmente são cada vez mais constantes? É necessário também evitar que produtores e empresas se aproveitem da situação. O Congresso, as prefeituras e o governo precisam planejar o monitoramento disso. O quilo do frango passou de R$ 50. A água mineral, de R$ 13 ou R$ 14, chegou a R$ 25. Precisamos de políticas que evitem aumentos tão altos e dificultem que famílias possam comprar até mesmo seus medicamentos.
O Brasil é um dos maiores produtores agropecuários e exporta muito. No mercado interno, porém, a inflação segue elevada, com preços de alimentos muito altos. Como a senhora avalia esse distanciamento de uma alimentação de qualidade, que impacta diretamente na qualidade de vida das pessoas?
É um tema que precisamos discutir cada vez mais: alimentos acessíveis e de baixo custo. Como posso vender produtos de qualidade para fora e deixar os de má qualidade para dentro do país? É preciso olhar para a comunidade local. Por que não oferecer aqui um alimento de qualidade e com preço acessível? O Brasil é um dos países que mais desperdiçam alimentos. Muitas vezes, prefere-se descartar a vender a preços mais baixos. Precisamos de políticas públicas que garantam acesso a alimentos de qualidade e de baixo custo para todos. Isso é um movimento em andamento, mas ainda há muito a avançar. É preciso também valorizar o produtor local, que deve ter condições de vender. No Amazonas, não podemos ter o mesmo olhar para Tabatinga e para Lábrea. Cada território tem realidade, situação, acessos, tempo de transporte, gastos e valores diferentes. É preciso olhar o Amazonas em toda a sua especificidade e grandeza.
Qual a importância do Selo Unicef para o Amazonas e quantos municípios já aderiram ao programa?
O selo é uma estratégia para que os municípios melhorem seus indicadores sociais. Trata-se de pensar na criança que está no ambiente escolar, protegida contra violências, acessando serviços de saúde. Há uma gama de indicadores que o município, durante o período de adesão, precisa acompanhar e buscar melhorar. O município que assume esse compromisso passa a ter um olhar prioritário para crianças e adolescentes. O que buscamos, primeiramente, é que cada município tenha um comitê instituído, minimamente com políticas nas áreas de educação e assistência social, acompanhando indicadores, planejando melhorias e olhando para as especificidades de cada território.
Publicado originalmente em A Crítica
https://www.acritica.com/geral/fome-norte-e-uma-regi-o-ainda-muito-vulneravel-1.385413
Baixe aqui a apresentação “Região Amazônica: Desafios e Estratégias em Segurança Alimentar e Nutricional“
