José Graziano da Silva: “Há famílias famintas com crianças obesas”

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O ex-diretor-geral da FAO está comprometido com políticas públicas para erradicar a insegurança alimentar e promover uma dieta saudável

Por Patricia R. Blanco no El Pais | 18/03/2024

José Graziano da Silva (Urbana, Estados Unidos, 74 anos) tem uma receita contra a fome: “Políticas públicas”. Nem a “filantropia” nem a “ajuda de emergência” podem acabar com a insegurança alimentar no mundo, diz esse agrônomo e economista brasileiro durante uma entrevista em Madri, para onde viajou para participar nesta terça-feira de um evento na La Casa Encendida sobre a fome como questão política. Ex-diretor geral da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) entre 2012 e 2019, ele sabe bem que a intervenção estatal funciona. Foi o arquiteto, em 2001, do Fome Zero, o programa que conseguiu tirar 41 milhões de pessoas da linha de pobreza no Brasil. Agora, no instituto de mesmo nome, ele aconselha outros países a legislarem contra a fome e a favor da alimentação saudável. “No ano passado, 186 governos nos visitaram”, ele se orgulha. 

Pergunta: Há alimentos suficientes para toda a população mundial? 

Resposta. Em termos globais, temos estoques de grãos suficientes para alimentar a todos. Os estoques de trigo diminuirão um pouco por causa das secas, mas, em uma base per capita, temos milho, trigo, arroz e soja suficientes. O problema é que muitas pessoas não têm acesso a esses produtos por causa dos preços. Mas frutas, verduras e legumes estão em falta. 

P. Os números da fome não estão voltando aos níveis pré-pandêmicos. Qual é a nossa situação? 

R. A pandemia foi um desastre total. Mas em 2022, o impacto da guerra na Ucrânia foi agravado pelo aumento do custo dos cereais em todo o mundo. Os índices de preços de alimentos da FAO dispararam e são os mais altos da história. Estamos ficando cada vez piores. 

P. Por que não estamos melhorando? 

R. Há uma diferença importante. O efeito da pandemia foi demarcado no tempo. As vacinas foram pesquisadas e as pessoas voltaram a trabalhar. Mas não há vacina para acabar com a guerra. 

O que está acontecendo em Gaza é o que aconteceu na Europa na época dos castelos; os inimigos os cercaram e usaram a fome como tática de destruição para vencer a resistência.

P. E novas guerras estão sendo adicionadas, como em Gaza ou no Sudão. 

R. O que está acontecendo em Gaza é o mesmo que acontecia na Europa na época dos castelos. Quando havia uma invasão, as pessoas fugiam do campo e se refugiavam dentro das muralhas. Os inimigos as cercavam e usavam a fome como tática de destruição para vencer a resistência. 

P. A África é o lugar com maior insegurança alimentar do mundo, por que isso acontece? 

R. De acordo com a FAO, há 58 países em situação de emergência alimentar, principalmente na África e no Oriente Médio. E o problema aqui é que, mesmo que um agricultor tenha acesso à terra, ele não pode alimentar sua família porque não tem água. Com as mudanças climáticas, a agricultura se torna uma loteria. 

Com as mudanças climáticas, a agricultura se torna uma loteria.

P. A solução deve ser tecnológica? 

R. A questão tecnológica hoje está resolvida e há disponibilidade. Mas a questão é como uma família rural africana acessa essa tecnologia, como ela a administra se não tiver a capacidade técnica ou o apoio necessário. Está se tornando cada vez mais complicado resolver a fome por meio da tecnologia. Não acredito que a solução tecnológica seja uma alternativa para a fome permanente no mundo. 

P. Qual é a alternativa? 

R. A questão é mais complicada agora do que quando começamos a trabalhar com o programa Fome Zero no Brasil. Naquela época, a fome era basicamente rural e uma importante vacina contra a fome era aumentar a produção agrícola, especialmente nas áreas rurais. Se os pequenos agricultores passassem fome, seria possível melhorar suas condições de vida e de trabalho. Hoje isso não é mais possível, porque as pessoas que passam fome estão nas grandes cidades. A fome rural só continua na África. 

José Graziano da Silva, responsable del programa Hambre Zero, el pasado lunes en Madrid [Foto: ÁLVARO GARCÍA]
José Graziano da Silva, responsable del programa Hambre Zero, el pasado lunes en Madrid [Foto: ÁLVARO GARCÍA]

P. A fome agora é urbana? 

R. Sim, porque, para sair da pobreza extrema, os pobres migraram para a cidade. Eles deixaram de ser produtores e se tornaram empregados. Mas na cidade, por exemplo, os programas de transferência de renda para as famílias não funcionam. Antes, no campo, você transferia o dinheiro e podia gastá-lo com comida. Na cidade, o dinheiro é usado para outros fins: transporte, aluguel, educação…. 

P. E o que pode ser feito? 

R. Estamos tentando encontrar outras maneiras. Por exemplo, restaurantes populares, cantinas públicas ou cantinas comunitárias. Mas a fome urbana tem outra dimensão, porque não se trata apenas de fome, mas também de desnutrição. Estamos enfrentando uma epidemia de obesidade. Há famílias famintas com crianças obesas devido ao consumo de produtos processados e ultraprocessados, com excesso de gordura, açúcar, açúcar e outros produtos nutricionais. 

Se uma criança não come antes de ir para a escola, a culpa não é da mãe, porque é obrigação do Estado garantir a alimentação. 

P. Como isso pode ser interrompido? 

R. Com a implementação de políticas públicas. Se continuarmos com a ideia de que o combate à fome é uma questão de filantropia ou de ajuda emergencial, não iremos a lugar algum. A alimentação, e a alimentação saudável em particular, é um direito. Se uma criança não come antes de ir para a escola, a culpa não é da mãe, pois é obrigação do Estado garantir a alimentação. Tornar a fome uma questão política é estar mais próximo da solução. 

P. Que políticas públicas o senhor recomenda para alcançar uma alimentação saudável? 

R. No Chile, por exemplo, há uma lei que torna obrigatória a rotulagem do excesso de gordura, sal ou açúcar com grandes selos pretos. Esses selos alertam o consumidor e decodificam o que está nas letras miúdas. Além disso, a publicidade que atrai crianças para esses tipos de produtos foi proibida. E eles não são comercializados nas cantinas das escolas. Aqui [em Madri], fui a um supermercado e fiquei impressionado com o fato de que logo na entrada havia três gôndolas com todos esses produtos voltados para crianças. Se os pais fazem compras lá, é impossível não passar por essas gôndolas sem que as crianças sejam tentadas. 

P. O senhor proibiria isso? 

R. Sim. O que precisamos fazer é financiar produtos de melhor qualidade. Por exemplo, você pode aumentar os impostos sobre produtos não saudáveis e reinvestir esse dinheiro no incentivo ao consumo de produtos saudáveis. Alguns países estão fazendo isso… Em suma, políticas públicas.

Tradução: Blog do IFZ

Publicado no El Pais
José Graziano da Silva: “Hay familias que pasan hambre con niños obesos” | Planeta Futuro | EL PAÍS (elpais.com)