Alinhado à meta climática de 1,5 ºC, os cardápios da conferência oferecem dois terços de refeições à base de plantas, além de opções sem glúten, kosher e uma minoria com carne
Por Leticia Klein para Um Só Planeta | 11/12/2023
DUBAI | Conhecido como a “semente do Universo” pelo povo Dogon, do Mali, no oeste da África, o fônio é cultivado há mais de 5.000 anos, e com pouca água. Não têm glúten, é nutricionalmente denso, rico em minerais e aminoácidos e com baixo índice glicêmico. Cozido em apenas cinco minutos, pode ser usado no preparo de cuscuz, saladas, tabule, mingau, hambúrguer vegetariano, recheios e pães e até cerveja.
A colheita manual do fônio é feita majoritariamente por mulheres, que depois precisam trabalhar intensamente na limpeza e processamento dos grãos, cheios de areia acumulada – leva duas horas para gerar o equivalente a um quilo. A falta de capacidade de processamento e a baixa produtividade agrícola, somadas ao número insuficiente de consumidores, são os motivos para que as famílias de agricultores vivam em condições de pobreza. Com vontade de contribuir para mudar essa realidade, aumentando assim a renda familiar, o chef senegalês Pierre Thiam fundou a Yolélé, uma marca de produtos feitos de fônio que vem conectando pequenos agricultores a mercados locais e globais nos últimos seis anos. Devido à construção de fábricas para processamento do grão, a capacidade de produção subiu para 2 toneladas por hora.
Aliando tecnologia e conhecimento tradicional, a Yolélé leva ingredientes e sabores do Senegal para vários lugares do mundo, como Nova York, onde o chef Thiam comanda o restaurante Teranga, de sabores africanos (com vários outros ingredientes além do fônio). A criação de um mercado global para culturas tradicionais não só garante segurança econômica para os agricultores, como também contribui para a promoção de sistemas agrícolas resilientes, biodiversos e sustentáveis, que perpetuam técnicas regenerativas já praticadas pelas comunidades há séculos, como consórcio, cultivo de cobertura e rotação de culturas.
“É preciso olhar para trás para olhar para a frente”, disse Paul Newnham, diretor-executivo do SDG2AdvocacyHub, , organização que coordena o Manifesto dos Chefs, uma rede de chefs de 96 países que estão conectados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. “Estamos olhando para as culturas tradicionais, que cresceram ao longo de milênios e que foram utilizadas como parte da promoção de soluções. Temos que identificar onde estão esses heróis e não se trata de apenas um, trata-se de muitos. Muitos dos problemas que temos hoje em torno de saúde humana, meio ambiente, impactos na água e no clima é porque nós focamos demais na eficiência, na redução do preço e na acessibilidade. O que temos que fazer agora é abrir esse leque e ter uma diversidade de soluções”, falou em painel sobre “Receitas para mudança”, no pavilhão dedicado ao tema da alimentação na COP28.
Financiamento para pequenos agricultores – como o fornecido pelo Fundo Internacional para Desenvolvimento da Agricultura (Ifad) – inovação e ampliação do uso de vegetais no cardápio são os outros ingredientes do que os especialistas do tema na COP28 consideram como agricultura resiliente e alimentação sustentável alinhadas à meta de aquecimento global de 1.5 ºC.
A única das conferências climáticas até hoje a destacar o tema com anúncios de políticas, um pavilhão exclusivo e um dia temático dedicado à “Alimentação, agricultura e água” também refletiu essa agenda na comida servida ao longo de duas semanas, com dois terços das cerca de 250 mil refeições diárias sendo vegetarianas ou veganas.
“Sabemos que os nossos sistemas alimentares estão intrinsecamente ligados ao destino do nosso mundo natural, e por isso tomamos a decisão progressiva de garantir que exploramos como a comida fornecida durante o evento pode ser responsável e consciente em relação ao clima, ajudando a ecoar a ênfase que colocamos na Declaração dos Emirados”, disse Marian Almheiri, ministra das Alterações Climáticas e Ambiente dos Emirados Árabes Unidos e líder do sistema alimentar para a COP28, durante um evento de quatro dias de treinamento, orientação e inspiração para o setor alimentício no fim de outubro, em Dubai, organizado pela presidência da COP28, o Ministério de Mudanças Climáticas e Meio Ambiente e o SDG2Advocacy Hub.
A estratégia de alimentação sustentável da cúpula foi construída com base em três pilares: oferecer um menu composto por dois terços de vegetais, limitar a intensidade de carbono e água dos alimentos servidos e garantir um foco na nutrição, no tamanho das porções, na acessibilidade e na redução de desperdícios. Todos os fornecedores tiveram que submeter menus para a validação de acordo com essa estratégia e foram solicitados a usar produtos locais sempre que possível.
Seguindo esse cardápio, cada participante da conferência conseguiria ter três refeições e um lanche sem exceder 2,3 quilogramas de dióxido de carbono equivalente por dia, que foi o limite de consumo estabelecido por pessoa pensando na meta de manter o aquecimento global até 1.5 ºC. Para medir isso, a organização contou com a Nutritics, uma plataforma digital que avalia ciclo de vida e dados agrícolas na cadeia de abastecimento.
“A presidência da COP28 e o ministério estavam realmente interessados em garantir que tivéssemos alimentos consistentes e alinhados com as conversas sobre comida e sua conexão com o clima. Eles disseram que queriam dar às pessoas uma escolha”, contou Paul em entrevista ao Um Só Planeta. Distribuídos ao longo do Expo Center Dubai, mais de 90 estabelecimentos de alimentos e bebidas (de cerca de 60 marcas) apresentaram uma grande variedade de cardápios, incluindo um exclusivo parque de food trucks 100% vegano e o Alkebulan, o primeiro refeitório africano do mundo. “Acho que parte do caminho no qual precisamos avançar é dar opções e informações às pessoas, para que elas possam fazer escolhas sobre como e o que comem e o impacto que isso tem.”
O food park exclusivo de alimentação vegana estava sempre lotado na hora do almoço, e algumas pessoas nem sabiam que estavam comendo uma refeição 100% feita à base de vegetais, conforme me falaram. “É saboroso”, “A comida é boa, por isso continuamos voltando”, me disse um grupo de italianas. “Geralmente em eventos relacionados à questão climática, tem muita carne e comidas não amigáveis ao clima, então é legal ter muitas opções à base de plantas, especialmente na COP”, falou Marta, que não é vegetariana.
Nesse recanto, onde se reúnem cinco restaurantes, já experimentei opções de quatro carrinhos, entre elas dois ótimos hambúrgueres. Achei delicioso o arroz com carne vegetal, salada e molho do Wild & The Moon, restaurante à base de plantas, sem açúcar, sem glúten e com embalagem de papel que existe há oito anos em Dubai, fundado por uma chef de Nova York.
No Roots and Rolls, fundado por Sandra de Jong e seu marido em Barcelona, comi sushis saborosíssimos (até melhores do que os originais, como me disse um colega do lado). “As pessoas voltam para experimentar mais coisas. Vemos nossos clientes experimentando um carrinho em um dia e tentando outro em outro dia”, contou Sandra. “Como indivíduo, você não pode colocar painéis solares todos os dias, não pode comprar um Tesla todos os dias e às vezes você precisa viajar a trabalho. Mas na maioria das vezes você pode escolher um almoço diferente, então é muito fácil reduzir sua pegada de carbono simplesmente mudando a forma como você come”, avalia a fundadora.
O cardápio desta COP, com mais vegetais e menos carne, reflete a maneira como as sociedades ao redor do mundo deveriam se alimentar, segundo o IPCC, mas é preciso pensar os sistemas alimentares e a escolha de ingredientes de maneira holística. “Você tem que calcular quais são os insumos, quais são os resultados, a forma como as coisas acontecem. O mesmo ingrediente pode ter uma pegada de carbono ligeiramente diferente dependendo de onde vem. Acredito que não existe comida boa ou ruim, mas há coisas que você deveria comer mais e coisas que você deveria comer menos e tudo se resume ao tamanho, à prática e à maneira como é cultivado; e a forma de cultivo, dependendo de onde você está, também tem diferenças”, explica Paul.
É claro que nem tudo acontece conforme os planos. Houve problemas, como geralmente acontece em grandes eventos. Nos primeiros dias da COP, eu fui a três recepções que não tinham comida nem bebida. Os responsáveis por dois dos pavilhões me disseram que o fornecedor entrou em contato para dizer que não ia entregar os pedidos, e nada mais. Dias depois, um deles começou a receber os pedidos, mas sem informações sobre reembolso; enquanto o outro desistiu de encomendar comida com o fornecedor (que reembolsou alguns dos pedidos) e contratou diretamente um dos restaurantes do local. A assessoria da COP28 me respondeu que “infelizmente um dos fornecedores não conseguiu atender aos pedidos de almoço quente do serviço de alimentação sob demanda”.
Segundo Paul, problemas de logísticas são comuns em eventos como esse, que concentram dezenas de milhares de pessoas e nos quais a comida precisa passar pela segurança. Pelo que apurei com comerciantes, o problema logístico também teve a ver com o atraso no credenciamento dos seus funcionários, o que fez com que muitos só conseguissem começar a trabalhar dias depois do evento ter começado. Aparentemente, tudo foi resolvido depois de quatro ou cinco dias.
Desafios assim também são um reflexo dos problemas que precisamos enfrentar nos sistemas alimentares para torná-los sustentáveis, resilientes e parte das soluções para o combate às mudanças climáticas. Segundo relatório sobre o Estado da Alimentação e Agricultura, da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), os atuais sistemas agroalimentares geram custos ocultos à nossa saúde, ao ambiente e à sociedade equivalentes a US$10 bilhões por ano, sendo que mais de 70% respondem por dietas pouco saudáveis, ricas em alimentos ultraprocessados, gorduras e açúcares, levando à obesidade e doenças não transmissíveis e a perdas de produtividade do trabalho – particularmente elevadas nos países com renda média-alta.
“Precisamos ter consciência climática em relação aos alimentos e pensar muito mais sobre como eles impactam a saúde das pessoas, o planeta e a prosperidade”, afirma Paul. Além de falar de proteína, precisamos falar sobre fibra e micronutrientes, e também biodiversidade, incluindo a da dieta. “Neste momento, 60% das calorias que obtemos no mundo vêm de cinco culturas agrícolas. Isso não é sustentável. Não é bom para nós e não é bom para o planeta. Precisamos realmente diversificar nossas dietas, e em geral comer mais plantas é algo que deveríamos fazer mais.”
Esta história foi produzida como parte da Climate Change Media Partnership 2023, uma bolsa de jornalismo organizada pela Earth Journalism Network da Internews e pelo Stanley Center for Peace and Security.
Publicado originalmente no Um Só Planeta
https://umsoplaneta.globo.com/clima/cop/noticia/2023/12/11/menu-oferecido-na-cop28-reflete-os-pilares-de-como-a-humanidade-deveria-se-alimentar-segundo-o-ipcc.ghtml