Os modelos climáticos não conseguem explicar a enorme anomalia térmica de 2023 — podemos estar em território desconhecido

Tendo em conta todos os fatores conhecidos, o planeta esquentou, no ano passado, 0,2°C a mais do que os cientistas do clima esperavam. São urgentemente necessários mais e melhores dados

Por Gavin Schmidt na Nature | 19/03/2024

Quando assumi o cargo de diretor do Instituto Goddard de Estudos Espaciais da NASA, herdei um projeto que acompanha as mudanças de temperatura desde 1880. Utilizando esse tesouro de dados, fiz previsões climáticas no início de cada ano desde 2016. É humilhante, e um pouco preocupante, admitir que nenhum ano confundiu tanto as capacidades de previsão dos cientistas do clima como 2023.

Nos últimos nove meses, as temperaturas médias à superfície da terra e do mar ultrapassaram os recordes anteriores todos os meses em até 0,2 °C — uma margem enorme à escala planetária. Espera-se uma tendência geral de aquecimento devido ao aumento das emissões de gases de efeito estufa, mas este súbito pico de calor excede em muito as previsões feitas pelos modelos climáticos estatísticos que se baseiam em observações anteriores. Foram propostas muitas razões para esta discrepância, mas, até agora, nenhuma delas foi capaz de conciliar as nossas teorias com o que aconteceu.

Para começar, as condições climáticas globais prevalecentes há um ano teriam sugerido que era improvável um período de calor recorde. No início do ano passado, o Oceano Pacífico tropical estava saindo de um período de três anos de La Niña, um fenômeno climático associado ao esfriamento relativo do Oceano Pacífico central e oriental. Com base em precedentes — de condições semelhantes prevalentes no início de um ano —, vários cientistas do clima, incluindo eu próprio, consideraram que a probabilidade de 2023 vir a ser um ano quente recorde era de apenas uma em cinco.

O El Niño – o inverso do La Niña – provoca o aquecimento do Oceano Pacífico tropical oriental. Este padrão climático só se instalou na segunda metade do ano, e o atual período é mais ameno do que os eventos semelhantes de 1997-98 e 2015-16.

No entanto, a partir de março passado, as temperaturas da superfície do mar no Oceano Atlântico Norte começaram a subir. Em junho, a extensão do gelo marinho em torno da Antártida era de longe a mais baixa já registrada. Em comparação com a cobertura média de gelo entre 1981 e 2010, faltava um bloco de gelo marinho com uma dimensão aproximada à do Alasca. A anomalia de temperatura observada não só foi muito maior do que o esperado, como também começou a aparecer vários meses antes do início do El Niño.

Então, o que terá causado esse pico de calor?

Os níveis atmosféricos de gases de efeito estufa continuaram a aumentar, mas a carga adicional desde 2022 só pode ser responsável por um aquecimento adicional de apenas cerca de 0,02 °C. Outras teorias apresentadas por cientistas do clima incluem as consequências da erupção vulcânica Hunga Tonga — Hunga Ha’apai, em janeiro de 2022, em Tonga, que teve efeitos de resfriamento provocados pelos aerossóis e de aquecimento provocado pelo vapor de água estratosférico, bem como o aumento da atividade solar no período que antecede o máximo solar previsto. Mas estes fatores explicam, no máximo, alguns centésimos de grau no aquecimento (Schoeberl, M. R. et al. Geophys. Res. Lett. 50, e2023GL104634; 2023). Mesmo depois de ter em conta todas as explicações plausíveis, a divergência entre as temperaturas médias anuais previstas e observadas em 2023 mantém-se em cerca de 0,2 °C — aproximadamente a diferença entre o recorde anual anterior e o atual.

Há mais um fator que pode estar desempenhando um papel importante. Em 2020, novos regulamentos exigiram que a indústria naval utilizasse combustíveis mais limpos que reduzissem as emissões de enxofre. Os compostos de enxofre na atmosfera são refletores e influenciam várias propriedades das nuvens, tendo assim um efeito de esfriamento global. As estimativas preliminares do impacto destas regras revelam um efeito pouco significativo nas temperaturas médias globais — uma alteração de apenas alguns centésimos de grau. Mas as avaliações confiáveis das emissões de aerossóis dependem de redes de esforços majoritariamente conduzida por voluntários, pelo que poderá demorar um ano ou mais até que os dados completos de 2023 estejam disponíveis.

Esta espera é demasiado longa. São claramente necessários sistemas de recolhimento de dados melhores e mais ágeis. A missão PACE da NASA, lançada em fevereiro, é um passo na direção certa. Dentro de alguns meses, o satélite deverá começar a fornecer uma avaliação global da composição de várias partículas de aerossol na atmosfera. Os dados serão inestimáveis para reduzir a incerteza substancial relacionada com os aerossóis nos modelos climáticos. As previsões, informadas por novos dados, poderão também fornecer informações sobre os fenômenos climáticos do ano passado.

Mas parece improvável que os efeitos do aerossol forneçam algo próximo de uma resposta completa. De um modo geral, a anomalia de temperatura de 2023 surgiu do nada, revelando uma lacuna de conhecimento sem precedentes, talvez pela primeira vez desde há cerca de 40 anos, quando os dados de satélites começaram a oferecer aos modeladores uma visão sem paralelo e em tempo real do sistema climático da Terra. Se a anomalia não estabilizar até agosto — uma expectativa razoável baseada em eventos anteriores do El Niño — então o mundo estará em território descon

hecido. Isto poderá significar que o aquecimento do planeta já está alterando significativamente o funcionamento do sistema climático, muito mais cedo do que os cientistas haviam previsto. Poderá também significar que as inferências estatísticas baseadas em acontecimentos passados são menos confiáveis do que pensávamos, aumentando a incerteza das previsões sazonais de secas e dos padrões de precipitação.

Grande parte do clima mundial é impulsionada por ligações intrincadas e de longa distância — conhecidas como teleconexões — alimentadas por correntes marítimas e atmosféricas. Se o seu comportamento estiver mudando ou divergindo acentuadamente das observações anteriores, precisamos conhecer essas alterações em tempo real. Precisamos de respostas para o fato de 2023 ter sido o ano mais quente, possivelmente, dos últimos 100.000 anos. E precisamos delas rapidamente.

Tradução: Blog do IFZ

Publicado originalmente na Nature
https://www.nature.com/articles/d41586-024-00816-z

Nature 627, 467 (2024)
doi: https://doi.org/10.1038/d41586-024-00816-z

Climate models can’t explain 2023’s huge heat anomaly — we could be in uncharted territory
Author: Gavin Schmidt
Publication: Nature
Publisher: Springer Nature
Date: Mar 19, 2024
Copyright © 2024, Springer Nature Limited