Estatística mostra que a cada hora 5,8 pessoas passam a viver ao relento no Brasil; mesmo com busca ativa, Bolsa Família não chega a todos
Por Marsílea Gombata e Marcos de Moura e Souza no Valor Econômico | 18/10/2023
SÃO PAULO | Depois de completar 18 anos e deixar o orfanato em que cresceu em Sobradinho, no Distrito Federal, Felipe Santos foi para Porto Alegre tentar a vida com uma família adotiva. Teve problemas envolvendo golpe e assédio sexual e resolveu dar meia-volta. No meio, mudou de ideia: quando o ônibus parou em São Paulo, decidiu ficar.
Desde então tem passado dias difíceis: vive na rua desde dezembro, não consegue emprego e não sabe como voltar a receber benefícios sociais como o Bolsa Família.
Só nos últimos cinco meses, 17.184 pessoas no país passaram a figurar nas estatísticas da população em situação de rua. É como se a cada dia as ruas do país ganhassem 139,71 novos moradores. Ou como se, a cada hora, 5,8 pessoas se tornassem sem-teto. O ritmo vem acelerando. De junho a agosto, a população em situação de rua no Brasil cresceu 5,16%, ante alta de 0,37% nos três meses anteriores.
Os números oferecem um retrato apenas parcial porque englobam só pessoas em situação de rua inscritas no Cadastro Único (CadÚnico). Pesquisadores do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua da Universidade Federal de Minas Gerais (Polos/ UFMG) – que compilaram os dados acima – estimam que cerca de 30% das pessoas que vivem nas ruas ainda não estão no CadÚnico.
O CadÚnico é a plataforma de dados do governo federal que funciona como porta de entrada para diversas políticas de proteção social, entre elas o Bolsa Família.
Felipe Santos: falta de documento o impede de refazer inscrição no cadastro — Foto: Keiny Andrade/Valo
O aumento da população em situação de rua nas estatísticas do CadÚnico se deve à conjuntura econômica mais árdua, com queda do padrão de vida de muitas famílias e dificuldade para pagar por serviços básicos e moradia. Mas também reflete o reforço que o governo federal vem dando a municípios para que façam busca ativa de indivíduos em situação de rua e que não figuravam no CadÚnico.
“O esforço dos municípios, apoiados com recursos financeiros do governo federal, por meio do Programa de Fortalecimento Emergencial do Atendimento do CadÚnico da Assistência Social, também tem o objetivo de refinar melhor o cadastro, retirando algumas pessoas que já não mais se encaixam no perfil de beneficiários de políticas sociais”, diz André Luiz Freitas Dias, um dos coordenadores do Polos/UFMG.
Dias avalia que a melhoria do cadastro permite “otimização” de investimentos em políticas públicas. O trabalho de aperfeiçoamento e de aumento dos cadastrados é necessário para que se garanta que o recurso seja dirigido, de fato, para quem precisa, comenta.
Apesar de a população em situação de rua ser considerada público prioritário pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social (MDS), nem todos recebem benefícios sociais. Em São Paulo, cidade com 24,7% da população em situação de rua do país, há hoje 56.288 pessoas nessa condição. Dessas, 47.709 recebem o Bolsa Família, segundo dados de agosto.
Dos 8.579 restantes, 4.887 vivem na rua e não recebem Bolsa Família porque têm renda per capita mensal acima de meio salário mínimo – limite para ingressar no programa. Outros 3.692 não recebem o benefício por razões diversas, como a falta de documento.
Felipe Santos chegou a receber o Auxílio Brasil (atual Bolsa Família), mas teve o benefício bloqueado por desatualização do cadastro. “Quando fui atualizar, disseram que tinha de esperar 90 dias. Fui ao Cras [Centro de Referência de Assistência Social] e falaram que o problema era na Caixa. Fui à Caixa e falaram que o problema era no Cras”, conta. Santos, 19 anos, dorme nas ruas entre Santa Cecília e Arouche, centro paulistano. “Para piorar, esses dias dormi com o documento na mão e me roubaram.
Ele se diz sem ânimo de ir atrás de um novo RG para regularizar sua situação no Cras e voltar a receber o benefício. Seu sonho é arrumar emprego, morar em uma quitinete e ter vida “normal”. “Quero voltar para a sociedade. Poder ir em um barzinho, uma lanchonete, e as pessoas não ficarem me olhando e julgando, pensando que estou lá para roubá-las”, afirma.
Na rua há 20 anos, Sérgio Rodrigues, de 47 anos, tampouco recebe o Bolsa Família. Sem documento de identidade há dois anos, ele diz que na última tentativa de ir ao Poupatempo tirar um novo, o sistema estava fora do ar.
Rodrigues estudou até o oitavo ano do ensino fundamental, concluído com a ajuda do Telecurso 2000. Chegou a trabalhar com carteira assinada como revelador de fotografia na zona sul de São Paulo. Ficou dez anos detido por algo sobre o qual desconversa.
Depois da prisão, vive de catar latinha, cujo quilograma (ou 72 unidades) lhe rende R$ 4,5. Almoça no Bom Prato, restaurante social do governo paulista, por R$ 1. Banho e repouso custam R$ 13 por diária em pensões da região central. Usuário de crack, espera conseguir emprego em uma tabacaria em Higienópolis, se reerguer e escrever um livro sobre sua história.
“Não tenho barraca, não quero ir para abrigo. Da última vez que fui, um cara alcoólatra me ameaçou com faca porque achou que eu o estava encarando. Como vou dormir em um lugar desses?”, diz.
Segundo diretrizes do MDS, uma vez que pessoas que vivem na rua têm o cadastro no CadÚnico atualizado, passam a receber o benefício no mês seguinte. O cadastramento dessas pessoas deve ser feito junto à área de assistência social dos municípios.
Luiz Fernando Francisquini, coordenador de Gestão de Benefícios da Secretaria Municipal de Assistência Social (SMADS) de São Paulo, argumenta que hoje cerca de 80% da população que vive nas ruas na metrópole recebe o Bolsa Família e que a prefeitura possui 97 pontos para inscrição no CadÚnico, sendo seis centros de referência para a população em condições de rua.
“Uma porta de entrada é as pessoas irem e se cadastrarem, a outra é a busca ativa que fazemos com unidades móveis”, diz.
Há 40 anos convivendo e trabalhando com pessoas em situação de rua em São Paulo, o padre Júlio Lancelotti é crítico quanto à provisão do Estado a essa população. “As respostas do Estado geralmente vão ao encontro dos efeitos, e não das causas”, diz o coordenador da Pastoral do Povo de Rua de São Paulo. Ele argumenta que o mais eficiente seria o Estado criar condições para que famílias não tivessem de ir para a ruas.
“Um sistema de proteção social mais estruturado, com saúde, educação, trabalho, assistência social faria com que muitos não estivessem nas ruas. O quadro atual revela a falha da proteção social.”
Atendemos famílias que não tinham contato com programas sociais, que, nitidamente, empobreceram”
— Luiz Fernando Francisquini
Apesar de o momento de crise mais aguda parecer ter ficado para trás, ele observa que o número de famílias com mulheres e crianças nas ruas aumentou. O mesmo vale para os mais jovens e idosos.
O IBGE não inclui a população em situação de rua no censo demográfico. Um projeto de lei para incluí-la, de autoria do senador Fabiano Contarato (PT-ES), tramita no Congresso. A prefeitura de São Paulo, contudo, vem realizando pesquisa censitária com adultos que vivem nas ruas da cidade. Os dados divergem do CadÚnico.
Segundo o último levantamento, a população em condições de rua em São Paulo hoje é de 31,8 mil pessoas. A diferença é explicada pela metodologia, afirma Francisquini. A prefeitura contabiliza pessoas em caráter mais permanente. O CadÚnico inclui também quem está na rua há menos tempo e tem a perspectiva de deixá-la em breve.
A pesquisa, cujos dados foram coletados em 2021 e divulgados em 2022, mostra que a maioria vive nas ruas por conflitos familiares (34,7%), seguido por perda de trabalho ou renda (28,4%), dependência de drogas ilícitas (16,6%), perda de moradia (13,9%), e dependência de álcool (12,9%). A soma de dependência de álcool e outras drogas chega a 29,5%.
O principal motivo por trás dos conflitos familiares é o uso abusivo de álcool e outras drogas (28,6%). Em seguida vêm episódios como fim de relacionamento (20,7%), a pessoa ter sido vítima (9,7%) ou autora (6,7%) de violência doméstica, e questões envolvendo sexualidade e identidade de gênero (4,3%).
Gucci Zara, de 23 anos, e Rodrigo Medeiros, de 41 anos, se conheceram na rua. Porque é dependente do álcool, Medeiros teve de deixar casa dos pais em Parelheiros, extremo sul de São Paulo. Passou a morar em albergues e a trabalhar montando palcos para shows em estádios. Conheceu Gucci. Ela saiu de casa, em Belo Horizonte, porque a família não a aceitava como trans.
Viveram cerca de um ano em um hotel social. Após vários desentendimentos entre o casal, Medeiros teve de sair – e ela quis ir junto. Hoje moram em uma barraca sob o Elevado Presidente João Goulart, o Minhocão. Têm a companhia de Ferrugem, cachorra do vizinho.
Gucci recebe R$ 600 de Bolsa Família por mês, assim como Medeiros, apesar de formarem uma única família. A ideia, contudo, é deixar a rua, o benefício e mudar de vida. “Gostaria de sair da rua. A minha família está ajudando e vem falando de a gente se mudar para lá”, conta Medeiros, que também planeja voltar a montar palcos.
Ambos cursaram até o terceiro ano do ensino médio. Gucci começou a graduação em artes visuais. Largou no meio. Se puder, quer voltar à sala de aula. “Quero focar em outra área. Não sei ainda se moda ou assistência social”, diz.
Segundo a prefeitura, 42,2% da população em condição de rua em São Paulo está nessa situação há menos de dois anos, sendo 28,4% há menos de um ano. Outros 37,3% vivem na rua há mais de 5 anos.
Dos 2.021 entrevistados, 14,9% relataram ter trabalhado em atividades da construção civil antes de passar a viver na rua, 12,4% como ajudante geral, 11,6%, autônomos, 10,8%, em serviços de limpeza ou cozinha, 8,6%, no varejo e 7,9%, na indústria, e 7% não trabalharam. Do total, 73,8% tiveram vínculo formal de trabalho e registro em carteira – em 2019 esse percentual era de 75,7%.
Francisquini diz que uma parcela residual de pessoas nas ruas é de difícil acesso, porque não quer ser identificada ou por questões de saúde mental. “Passamos por um período em que muita coisa mudou. A renda per capita caiu, pessoas foram para a rua. Hoje atendemos famílias que nunca haviam tido contato com programas sociais. Famílias que, nitidamente, empobreceram.”
Publicado no Valor Econômico
https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/10/17/populacao-em-situacao-de-rua-cresce-e-desafia-programas-sociais.ghtml