São Paulo luta contra desperdício de alimentos, mas lei ainda deixa a desejar, afirmam especialistas

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Com mais de um ano de aplicação de regulamentação que busca reduzir desperdício e promover doações, ONGs e acadêmicos ressaltam a urgência de parcerias entre setores e abordagem abrangente para lidar com insegurança alimentar na cidade

Por Denis Pacheco no Jornal da USP | 11/08/2023

Especialistas em segurança alimentar afirmam que, embora São Paulo tenha avançado em seus esforços para combater o desperdício de alimentos, a atual Lei Municipal que regulamenta doações ainda deixa a desejar em relação à sua efetividade. O debate ganhou ainda mais importância diante das estimativas divulgadas em julho deste ano pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), que apontam que 21,1 milhões de brasileiros estão enfrentando insegurança alimentar severa, passando dias sem acesso adequado a alimentos básicos.

O dado figurou em nota publicada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), que trouxe à tona números alarmantes, revelando que, até o ano passado, o Sudeste do Brasil abrigava o maior contingente de pessoas em situação de fome, com 6,8 milhões delas no Estado de São Paulo. Não por acaso, no último ano, a Prefeitura da capital lançou iniciativas como o Programa de Combate ao Desperdício e à Perda de Alimentos, além da Lei nº 17.755/2022, que autoriza estabelecimentos de alimentos a doarem excedentes não comercializados.

Após um ano e meio da promulgação da lei, porém, números persistentes de desperdício alimentar desafiam a cidade. A professora Aline Martins de Carvalho, da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, considera que a legislação foi um primeiro passo: “Essa regulamentação reforça uma lei federal de 2020, que falava sobre desperdício  de alimentos e sobre quem poderia doar alimentos. Ela foi muito importante no contexto brasileiro, permitindo que os restaurantes e estabelecimentos ficassem mais confortáveis em doar”. Para ela, ter uma lei própria no município de São Paulo, reforçando a federal, mostra que a cidade está, a princípio, preocupada com a situação.

Aline Martins Carvalho
Aline Martins Carvalho

Antes da regulamentação, o processo de doação de alimentos enfrentava obstáculos, com questões ligadas a exigências sanitárias. “As pessoas ficavam muito preocupadas se podiam doar aquele alimento”, explica a professora, ao relatar que comerciantes se preocupavam com a distribuição do alimento que, se não fosse armazenado adequadamente após a doação, poderia comprometer a saúde de quem o consumisse. Nesses casos, “o estabelecimento que doou poderia ser responsabilizado legalmente e teria que pagar por esse tipo de problema”, conta ela.

Desafios da Lei Alimentar

Além de proteger quem doa e quem recebe o alimento, de acordo com a especialista, que também é coordenadora do Sustentarea, um grupo de extensão que tem como objetivo discutir os sistemas alimentares brasileiros e a alimentação sustentável no Brasil, a lei de 2022 surgiu de um propósito duplo: “Primeiro, ela permite doar alimentos que potencialmente poderiam ir para o lixo, alimentando pessoas em situação de vulnerabilidade social ou insegurança alimentar. Sabemos que cerca de 50% da população brasileira enfrenta algum grau de insegurança alimentar, com 33 milhões de pessoas passando fome. Ao dar esses alimentos adequados a essas pessoas vulneráveis, já temos um benefício significativo. O segundo benefício é ambiental, evitando que os alimentos acabem em aterros sanitários, gerando gases de efeito estufa.”

Luciana Quintão
Luciana Quintão

Luciana Quintão, fundadora da ONG Banco de Alimentos, que atua como parceira da Prefeitura, reforça a importância da normatização, mas aponta suas limitações: “Ela não atrapalha, mas está longe de ajudar, porque é uma lei solta”, sumariza. Segundo ela, a interpretação do texto é ambígua, quase dando a entender que indivíduos podem acessar esses locais e obter uma grande quantidade de alimentos, desde que não visem à venda. Nesse contexto, o texto carece de detalhes sobre a melhor abordagem para doar esses alimentos e não aborda “a questão da indústria”. Ele menciona apenas o comércio, “que é onde instituições como nós podemos pegar grandes quantidades e, por sua vez, alimentar pessoas”.

Ambas argumentam que, no futuro imediato, parcerias entre o setor público, organizações privadas e a sociedade civil são essenciais para reverter a insegurança alimentar e o desperdício na cidade. Por fim, a professora Aline destaca: “Acho que a lei contribui muito, mas [ela] não é suficiente. Ainda temos que trabalhar mais e avaliar como funciona essa política, de fato, em São Paulo”.

Enquanto a luta contra o desperdício de alimentos continua na capital paulista, especialistas e ativistas permanecem exigindo políticas mais robustas e coordenação entre diversos setores para enfrentar o desafio crescente da fome e garantir uma alimentação saudável e sustentável para todos.

Publicado originalmente no Jornal da USP
https://jornal.usp.br/atualidades/sao-paulo-luta-contra-desperdicio-de-alimentos-mas-lei-ainda-deixa-a-desejar-afirmam-especialistas/