Atlas dos Sistemas Alimentares do Cone Sul

Fundação Rosa Luxemburgo e Expressão Popular | Fevereiro de 2024

Quando a primeira edição deste Atlas dos sistemas alimentares do Cone Sul foi lançada, em junho de 2022, a pandemia dividia as preocupações globais ao lado da emergência da guerra entre Rússia e Ucrânia. No breve intervalo que nos separa até hoje, o número de pessoas que passam fome aumentou 150 milhões de pessoas, segundo o mais recente Relatório do Estado da Segurança Alimentar no Mundo (SOFI-FAO). É como se em um ano o mundo ganhasse um contingente de famintos equivalente ao dobro dos habitantes do Reino Unido.

A situação alimentar se agravou enquanto os efeitos da mudança climática se aprofundaram, fazendo que 2023 tenha sido o ano mais quente da história da Terra. Como se fosse pouco, o crescimento do militarismo recupera mais uma vez o pensamento de Rosa Luxemburgo de que a guerra é um desdobramento incontornável do avanço do capitalismo e do colonialismo.

Vivemos tempos de angústias, com crises sucessivas, cada vez mais globais e intensas, que nos afetam em amplos espectros da vida social; também vivemos um tempo de negação, de ocultação sistemática das alternativas existentes. A emergência da fome em uma escala colossal no início do século XXI é sintomática dessa dualidade paralisante.

Neste cenário, produzimos este Atlas. Um contexto de aprofundamento das crises desencadeadas por um modelo econômico incapaz de alimentar adequadamente a população. Em toda a região, com suas particularidades, as consequências desse modelo são cada vez mais evidentes. É o que demonstramos ao longo da primeira parte do Atlas, ao apresentar as principais razões pelas quais uma região composta por Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, abundante em recursos naturais e extensas terras agrícolas, não consegue fornecer alimentos em qualidade e quantidade suficientes para seu povo. Esses países estão presos em um sistema produtivo que contribui para a crise climática e expulsa as pessoas do campo, violando direitos dos povos tradicionais.

É bem verdade que entre junho de 2022 e janeiro de 2024 o Cone Sul viveu processos políticos desafiadores. A Argentina, hoje, tem como presidente o ultraneoliberal Javier Milei, que chega ao poder com um pacote de destruição de direitos sociais e ambientais, anunciando um governo a serviço do neoliberalismo e das transnacionais. No Paraguai, um governo de direita voltou a vencer, mas desta vez com uma maioria avassaladora no Congresso.

O povo chileno, por sua vez, vive uma situação de impasse político. Depois de um processo de insurreição popular que levou Gabriel Boric ao poder, nenhum campo político foi capaz de construir maioria social para aprovar uma Constituição que enterrasse o legado da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Ainda neste ano de 2024, o Uruguai elege um novo presidente em um cenário de enfraquecimento do presidente Luis Lacalle Pou e de leve favoritismo para a Frente Ampla, coalizão de centro-esquerda que governou o país entre 2005 e 2015.

Já no Brasil a tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023 lançou o alerta para aqueles que imaginavam que o triste capítulo escrito por Jair Bolsonaro em seu governo havia ficado para trás com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições. Pelo contrário, os setores que apoiaram a balbúrdia golpista, não por acaso com presença do agronegócio, mostraram que o atual cenário social e político exigirá muito mais das forças democráticas comprometidas pela redução das desigualdades sociais no país.

A questão alimentar joga um peso central nessas disputas. Não há democracia possível com os cerca de 100 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar no Cone Sul. É nesse sentido que este Atlas procura apresentar alternativas para a situação que enfrentamos. Na segunda parte, discutimos como o modelo do agronegócio não é a única forma de produzir e distribuir alimentos. Relatamos diversas estratégias de abastecimento de alimentos desenvolvidas a partir de um modelo baseado na soberania alimentar e na agroecologia. Sistemas de produção que, da semente ao prato, do campo à cidade, buscam produzir alimentos saudáveis, sem destruir a natureza, a preços justos, inseridos em processos de cooperação transformadora, combatendo a fome e a desigualdade.

A publicação original deste Atlas é resultado de uma ação conjunta entre os escritórios da Fundação Rosa Luxemburgo de Buenos Aires e São Paulo. Somos uma organização alemã vinculada ao partido Die Linke (A Esquerda), que atua na região apoiando a formação política e processos sociais, com escritórios na África, América, Ásia, Europa e Oriente Médio. Buscamos contribuir para a construção de uma sociedade mais democrática e igualitária, promovendo oficinas, seminários, pesquisas, reflexões e debates sobre alternativas ao capitalismo. Um de nossos eixos de trabalho é justamente a soberania alimentar, apoiando movimentos camponeses, ONGs e pesquisas nos países onde atuamos.

É nesse espírito que esta edição em português é veiculada com a Expressão Popular, editora parceira da Fundação com quem compartilhamos esse mesmo horizonte da soberania alimentar. Este Atlas só foi possível graças ao compromisso de nosso Conselho Editorial composto por membros de movimentos populares, camponeses, ONGs e universidades dos cinco países. Desse espaço, surgiram não apenas as prioridades destacadas no diagnóstico da primeira parte desta publicação, mas também o que seria necessário enfatizar na segunda parte e nas experiências alternativas. Foi um processo rico e dinâmico que, desde sua primeira edição, estimulou a criação de espaços de formação e articulações regionais.

Seria impossível relatar neste material as centenas de experiências dos movimentos populares, dos povos indígenas, das comunidades tradicionais que constroem, por meio de formas mais justas de produção e circulação de alimentos, um outro sistema alimentar. As lacunas são de exclusiva responsabilidade dos organizadores. O que reunimos aqui são exemplos concretos que nos ajudam a compreender as estratégias desenvolvidas nesse processo histórico de resistência e construção de alternativas. Entendemos que a soberania alimentar como projeto político requer a construção de outras formas de organização econômica e política.

Desejamos que esse levantamento se enriqueça com a contínua sistematização de iniciativas existentes – ou futuras – que pavimentam esse caminho.

Baixe aqui o Atlas dos Sistemas Alimentares do Cone Sul integral, em formato pdf