Mais de 40% dos alimentos produzidos no país são perdidos ou desperdiçados, mas novas pesquisas destacam como isso poderia ser uma ferramenta chave no combate à crescente insegurança alimentar. Uma instituição de caridade está liderando o movimento.
Por Constance Malleret no The Guardian | 27/02/2024
RIO DE JANEIRO | Cerca de meia dúzia de homens com touca higiênica prendendo os cabelos ocupam-se com caixas de produtos frescos do lado de fora de um depósito de alimentos num subúrbio da zona norte do Rio de Janeiro. Enquanto um deles lista os produtos, os outros colocam vegetais de formatos estranhos em sacos grandes antes de carregá-los em um carro que os espera. Mais tarde, os alimentos serão cozidos e servidos em cozinhas comunitárias, creches e outras instituições que oferecem refeições gratuitas para pessoas necessitadas em toda a cidade.
O depósito é administrado pela maior rede de bancos de alimentos do Brasil, o Sesc Mesa Brasil. Com 95 unidades espalhadas por todo o país, o Mesa – que significa mesa em português – coleta alimentos que de outra forma seriam desperdiçados em supermercados, fazendas e outros fornecedores e varejistas; os classificam e, em seguida, os doam para organizações parceiras.
“O programa tem dois pilares, combater o desperdício de alimentos e combater a fome”, diz Cláudia Roseno, gerente de apoio do Sesc, uma organização privada, sem fins lucrativos que fornece serviços culturais, de lazer, educação, saúde e serviços de apoio em todo o Brasil.
Uma nova pesquisa publicada na semana passada destaca como esses esforços para reduzir o desperdício de alimentos podem ser reforçados no Brasil e usados como uma ferramenta fundamental para combater a insegurança alimentar generalizada.
Segundo os últimos dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), 10 milhões de pessoas – quase 5% da população – sofrem de subnutrição no Brasil, e cerca de um terço da população sofre de insegurança alimentar moderada ou grave. O Brasil voltou a figurar no mapa da fome da ONU em 2021, sete anos depois de ter sido removido dele pela primeira vez, quando duas recessões severas e a pandemia de coronavírus fizeram a fome aumentar novamente.
No entanto, há um colossal desperdício de alimentos no país sul-americano. Os números precisam ser atualizados, diz Roseno, mas estima-se que 26,3 milhões de toneladas de alimentos sejam perdidas anualmente durante a produção e o transporte, enquanto no final da cadeia de abastecimento, os lares brasileiros desperdiçam 60 kg de alimentos per capita por ano.
“O Brasil é um dos maiores produtores de alimentos do mundo, mas cerca de 42% de todos os alimentos produzidos são perdidos ou desperdiçados … Portanto, há uma oportunidade real de melhorar o acesso aos alimentos redistribuindo produtos nutritivos para pessoas necessitadas, neste momento crítico em que [tantos] brasileiros enfrentam insegurança alimentar”, diz Lisa Moon, CEO da Global FoodBanking Network, que publica o Atlas Global de Políticas de Doação de Alimentos em parceria com a Harvard Law School’s Food Law and Policy Clinic.
Chayane Martins de Souza, 22 anos, é assistente de cozinha na associação católica Servas dos Pobres, que administra uma creche gratuita para 200 crianças pequenas no Rio. “Às vezes você vê pessoas sem-teto procurando [por comida] em lixeiras. É doloroso assistir quando você sabe que muitos lugares têm comida, mas preferem jogá-la no lixo do que doá-la. Não aqui. Fazemos porções extras para poder servi-los”, diz ela.
A creche Cardeal Câmara recebe doações quinzenais do Mesa que complementam as refeições das crianças e ajudam a fornecer almoços para dezenas de adultos famintos que fazem fila, todos os dias, do lado de fora do convento adjacente.
“Temos crianças que dependem das refeições servidas aqui para se alientarem… Você nota isso depois de um feriado bancário, em sua aparência, na maneira como comem com fome”, diz Flávia Ramos, diretora da associação que administra a creche. “Sem [as doações], não sei como nós conseguiríamos”, ela acrescenta.
O depósito de 400 metros quadrados do Sesc Mesa Brasil no Rio será transferido em breve para novas instalações, com mais de 12 vezes mais espaço. Em todo o Brasil, a organização ajudou, em média, 2,1 milhões de pessoas por mês no ano passado e é “uma das redes mais fortes do sul global”, segundo Moon, que trabalhou com políticas de desperdício de alimentos em 25 países diferentes.
O programa Mesa não só recupera alimentos que os supermercados já não conseguem vender, mas também vai até os agricultores, onde a maior parte da perda de alimentos ocorre – e treina suas organizações parceiras na manipulação e seleção de alimentos com pequenas imperfeições que, de outra forma, seriam descartados.
A demanda do consumidor por alimentos perfeitos, impecáveis, frequentemente leva ao descarte de produtos nutricionalmente bons [para uso], pelos [critérios adotados pelos] produtores, diz Cida Pessoa, gerente do programa no Rio. “As pessoas querem que a natureza seja completamente uniforme, que as cenouras cresçam da mesma forma, que os mamões venham sem manchas, que as maçãs sejam idênticas”, ela explica, enquanto um trabalhador passa por nós carregando uma caixa perfumada de manjericão murcho e bananas maduras demais.
“Também realizamos trabalhos educativos com as merendeiras das instituições. Porque entendemos que não adianta pensarmos que este produto alimentar ainda é comestível, se quando chega lá eles o jogam fora”, ela diz.
O combate à insegurança alimentar é uma prioridade para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que prometeu erradicar a fome durante seu mandato. Seu governo está investindo pesadamente em programas de redução da pobreza e colocou a fome na agenda do G20, que o Brasil preside este ano.
Manter os excedentes de alimentos fora dos aterros também ajudaria o país a atingir os seus objetivos ambientais. Globalmente, os alimentos desperdiçados são responsáveis por 8-10% das emissões de gases com efeito de estufa.
Além do compromisso de fome zero, o Brasil tem uma estratégia robusta para reduzir a perda e o desperdício de alimentos desde 2017, diz Moon. Mas esta nova pesquisa sugere onde isto pode ser melhorado, por exemplo através de melhores políticas fiscais e de rotulagem.
De volta ao berçário de Ramos, uma freira sai correndo para distribuir um pacote de comida enquanto as crianças devoram uma sopa feita com vegetais descartados.
“Mais! “Mais!” gritam as crianças, sem saber que estão evitando que abobrinhas demasiado grandes acabem como composto nos aterros sanitários.
Traduzido pelo Blog do IFZ
Publicado originalmente no The Guardian
https://www.theguardian.com/global-development/2024/feb/27/fight-waste-to-fight-hunger-food-banks-embrace-imperfection-to-feed-millions-in-brazil