Depois da fome, a qualidade: o Brasil e o desafio das dietas saudáveis

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O Brasil já provou que é possível reduzir a fome em tempo recorde. Agora, o desafio é outro: garantir o direito de todos a uma alimentação saudável, adequada e acessível

Por José Graziano da Silva no Correio Braziliense | 03/08/2025

O Brasil foi oficialmente retirado do Mapa da Fome da FAO em 2025, após a prevalência de subalimentação cair de 3,4% no período 2020-2022 para 2,4% em 2022-2024: uma redução de cerca de 30%, segundo a edição 2025 do relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo (SOFI), lançado semana passada pelas Nações Unidas.

Essa recuperação expressiva reflete a retomada de políticas macroeconômicas eficazes que haviam sustentado o primeiro avanço histórico em 2014, como a geração de empregos formais e a valorização do salário mínimo acima da inflação. Também foram fundamentais as políticas públicas focalizadas dirigidas a grupos mais desfavorecidos, como o Programa Bolsa Família, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) da agricultura familiar, a Merenda Escolar do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e o fortalecimento das redes de proteção social, todas elas retomadas com vigor no atual governo Lula em 2023/24. 

Mas sair do Mapa da Fome não significa que a fome tenha sido erradicada — e muito menos que a população brasileira esteja bem alimentada. Segundo o próprio Sofi 2025, cerca de 35% da população mundial, aproximadamente 2,8 bilhões de pessoas, não conseguem pagar por dietas saudáveis e de boa qualidade, que atendam aos padrões mínimos de variedade, equilíbrio nutricional e adequação calórica. No grupo de países de renda média-baixa, esse percentual é ainda mais alarmante: chega a 71,5%.

No caso do Brasil, o indicador nacional de incapacidade de pagar por uma dieta saudável varia entre 25% e 30% da população, de acordo com estimativas da própria Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e do Banco Mundial para o ano de 2022. Isso significa que cerca de 60 milhões de brasileiros estão excluídos do acesso a uma alimentação adequada do ponto de vista nutricional, mesmo em um país que já consegue garantir as calorias mínimas para praticamente toda a população.

Essa contradição explica em grande parte o crescimento contínuo da obesidade e do sobrepeso no país. Estima-se que mais de 15% dos adultos brasileiros sejam obesos e que cerca de metade da população esteja acima do peso — fenômeno que afeta de forma ainda mais intensa as camadas mais pobres e as crianças em idade escolar. Durante e após a pandemia, alimentos ultraprocessados se tornaram relativamente mais baratos e acessíveis que os alimentos in natura. É uma inversão perversa que afeta diretamente a saúde pública.

O acesso a frutas, verduras e legumes — fundamentais para uma alimentação de qualidade — segue muito abaixo do ideal. Dados da Pesquisa Nacional de Saúde indicam que menos de 25% da população consome a quantidade mínima recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que é de pelo menos 400g por dia desses alimentos. O resultado é um cenário crescente de má nutrição silenciosa: uma alimentação rica em calorias, mas pobre em nutrientes essenciais.

Sair do Mapa da Fome é um avanço significativo, mas não pode ser visto como um ponto final. Se o país não garantir a toda a população o acesso a dietas saudáveis e de qualidade, estará apenas mudando a forma da má alimentação — substituindo a fome por obesidade, diabetes e outras doenças crônicas associadas ao consumo excessivo de açúcar, sal e gorduras saturadas.

Essa nova etapa exige uma estratégia pública bem mais sofisticada e articulada. Não basta encher o prato. É preciso mudar o que vai dentro dele. E isso exige políticas específicas voltadas à qualidade da alimentação: subsidiar a produção local e o consumo de hortifrutigranjeiros; tributar bebidas açucaradas e produtos ultraprocessados com base em evidências de saúde pública; fortalecer circuitos curtos de comercialização e feiras agroecológicas; valorizar iniciativas como o PAA e o Pnae; e ampliar a educação alimentar e nutricional em todos os níveis da sociedade.

É fundamental também avançar na regulamentação clara da rotulagem nutricional e da publicidade voltada ao público infantil. Hoje, grande parte da população não sabe o que está comendo — e não tem como saber. A maioria dos alimentos processados disponíveis nos supermercados não informa de forma clara seus riscos à saúde, e os mecanismos de alerta ao consumidor ainda são pouco eficazes.

O Brasil já provou que é possível reduzir a fome em tempo recorde. Agora, o desafio é outro: garantir o direito de todos a uma alimentação saudável, adequada e acessível. A próxima etapa da jornada começa no prato — que já não está mais vazio, mas pode estar cheio de “comida-porcaria”.

JOSÉ GRAZIANO DA SILVA — ex-diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, 2012-19) e diretor do Instituto Fome Zero

Publicado originalmente no Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2025/08/amp/7216557-depois-da-fome-a-qualidade-o-brasil-e-o-desafio-das-dietas-saudaveis.html