Blog do IFZ | 08/12/2025
Alimentos ultraprocessados: hora de priorizar a saúde acima do lucro
A expansão do consumo de alimentos ultraprocessados (Ultra-Processed Foods — UPFs) na dieta humana tem comprometido a saúde pública, impulsionado o avanço de doenças crônicas em escala global e aprofundado desigualdades sanitárias. Enfrentar esse cenário requer uma resposta internacional articulada, capaz de confrontar o poder corporativo e transformar os sistemas alimentares em direção a práticas mais saudáveis e sustentáveis. Essa é a principal conclusão de uma nova série da The Lancet sobre UPFs e saúde humana, publicada em 19 de novembro.
Os UPFs correspondem ao grupo mais intensamente processado na classificação NOVA, que organiza os alimentos de acordo com o grau e a finalidade do processamento. São reconhecidos pela presença de aditivos sensoriais destinados a intensificar textura, sabor e aparência. O consumo elevado de UPFs está associado ao aumento do risco de obesidade, doenças cardiovasculares e diversas outras condições crônicas. Ainda assim, o conceito de ultraprocessamento não é consensual. Alguns críticos argumentam que incluir na mesma categoria alimentos com potencial valor nutricional — como cereais matinais fortificados ou iogurtes saborizados — e produtos como carnes reconstituídas ou bebidas açucaradas seria inadequado. No entanto, os UPFs raramente são consumidos isoladamente. É o padrão alimentar como um todo — no qual alimentos frescos e minimamente processados são substituídos por produtos altamente processados — e a interação entre múltiplos aditivos prejudiciais que explica os efeitos adversos observados.
No centro da indústria de UPFs está o processamento em larga escala de commodities de baixo custo, como milho, trigo, soja e óleo de palma, que são transformadas em uma variedade de substâncias e aditivos alimentares comercializados globalmente e controlados por um pequeno número de corporações transnacionais. Esses produtos são intensamente promovidos e formulados para serem hiperpalatáveis, estimulando o consumo frequente e, muitas vezes, substituindo preparações tradicionais ricas em nutrientes. Em muitos países de alta renda, os UPFs já representam cerca de 50% da ingestão alimentar domiciliar, e seu consumo cresce rapidamente em países de baixa e média renda. Os impactos ultrapassam a saúde humana: a produção industrial, o processamento e o transporte dessas commodities são altamente dependentes de combustíveis fósseis, e o uso de embalagens plásticas é onipresente nesse setor.
A indústria de UPFs gera receitas expressivas, que sustentam sua expansão e financiam estratégias de atuação política destinadas a impedir tentativas de regulamentação. Um número restrito de fabricantes domina o mercado global — entre eles, Nestlé, PepsiCo, Unilever e Coca-Cola. Para reverter o aumento do consumo de UPFs, torna-se necessária uma abordagem abrangente conduzida pelo poder público. Entre as ações prioritárias estão: incorporar marcadores de ultraprocessamento — como corantes, aromatizantes e adoçantes não nutritivos — aos modelos de perfil nutricional usados para identificar produtos não saudáveis; adotar rótulos de advertência frontais obrigatórios; proibir estratégias de marketing voltadas a crianças; restringir a oferta de UPFs em instituições públicas; e aplicar tributação mais elevada sobre esses produtos. O domínio de mercado e o poder político das corporações devem ser enfrentados por meio de políticas concorrenciais mais robustas, da substituição da autorregulação por normas obrigatórias e da contenção da interferência empresarial nos processos regulatórios.
A sociedade civil também desempenha papel decisivo na aceleração de mudanças, como demonstra o Programa de Política Alimentar da Bloomberg Philanthropies, que tem contribuído para avanços regulatórios importantes na América Latina e na África Subsaariana. A iniciativa atua formando coalizões para promover políticas de regulação, monitorar sua implementação e apoiar países que enfrentam interferência corporativa ao adotar medidas para reduzir o consumo de UPFs.
A equidade deve ocupar posição central no enfrentamento desse desafio. O consumo de UPFs costuma ser maior entre grupos em situação de vulnerabilidade econômica. Esforços para reduzir a ingestão desses alimentos não podem ampliar desigualdades de gênero relacionadas às responsabilidades culinárias, tampouco agravar a insegurança alimentar entre populações que dependem de opções ultraprocessadas de baixo custo. Em consonância com as recomendações da Comissão EAT-Lancet, transformar os sistemas alimentares requer redirecionar subsídios agrícolas atualmente concentrados em grandes corporações transnacionais. É fundamental fortalecer uma diversidade maior de produtores, capazes de oferecer alimentos locais, acessíveis, minimamente processados, convenientes e atrativos ao consumidor. A tributação sobre UPFs poderia financiar programas de transferência de renda destinados à aquisição de alimentos integrais e minimamente processados, contribuindo para proteger famílias de baixa renda.
A indústria de UPFs representa de forma emblemática um sistema alimentar cada vez mais controlado por corporações transnacionais que priorizam o lucro em detrimento da saúde pública. A série da The Lancet reforça a urgência da implementação de políticas capazes de enfrentar esse desafio. Para isso, é necessária uma resposta global coordenada e adequadamente financiada, baseada em políticas amplas, integradas e mutuamente reforçadoras, que enfrentem práticas corporativas nocivas e limitem o domínio da indústria de UPFs sobre os sistemas alimentares em todo o mundo.
Resumo executivo da série “Alimentos ultraprocessados e saúde humana”
Esta série, composta por três artigos, examina as evidências relativas ao crescente consumo de alimentos ultraprocessados nas dietas ao redor do mundo e destaca sua associação com diversas doenças crônicas não transmissíveis. O avanço do consumo desses produtos é impulsionado por grandes corporações globais que empregam estratégias políticas sofisticadas para proteger e maximizar seus lucros.
A ideia de que educação nutricional e o apelo à mudança individual de comportamento seriam suficientes para enfrentar esse problema mostra-se inadequada. A deterioração da qualidade das dietas constitui uma ameaça urgente à saúde pública, exigindo políticas coordenadas e ações de advocacy voltadas à regulamentação e à redução da disponibilidade de alimentos ultraprocessados, bem como ao aumento do acesso a alimentos frescos e minimamente processados.
A série propõe uma visão alternativa para os sistemas alimentares, enfatizando o fortalecimento de produtores locais, a preservação das transições culturais relacionadas à alimentação e os benefícios econômicos que podem ser gerados para as comunidades.
Baixe aqui o material completo da The Lancet Series: Ultra-Processed Foods and Human Health (textos originais em inglês):
- Ultra-processed foods: time to put health before profit – Editorial
- Ultra-processed foods and human health: the main thesis and the evidence – Carlos Monteiro et al.
- Policies to halt and reverse the rise in ultra-processed food production, marketing, and consumption – Marion Nestle et al.
- Towards unified global action on ultra-processed foods: understanding commercial determinants, countering corporate power, and mobilising a public health response – Philip Baker et al.
- Ultra-Processed Foods and Human Health – Infographics
Baixe aqui o material completo da Série The Lancet: Alimentos Ultraprocessados e Saúde Humana (textos em português, traduzidos pelo NUPENS-USP):
- Alimentos ultraprocessados e saúde humana: a tese central e as evidências – Carlos Monteiro et al.
- Políticas para conter e reverter o aumento da produção, do marketing e do consumo de alimentos ultraprocessados – Marion Nestle et al.
- Rumo a uma ação global unificada sobre alimentos ultraprocessados: compreendendo os determinantes comerciais, enfrentando o poder corporativo e mobilizando uma resposta de saúde pública – Philip Baker et al.
Evento de lançamento da “Série The Lancet: Alimentos Ultraprocessados e Saúde Humana”, no dia 3 de dezembro, na Fiocruz Brasília.
O material integral da série, em inglês, está disponível no sítio do The Lancet
https://www.thelancet.com/series-do/ultra-processed-food
O material integral da série, em português e em inglês, está disponível no sítio do NUPENS-USP
https://www.fsp.usp.br/nupens/materiais-da-serie-the-lancet-sobre-alimentos-ultraprocessados-e-saude-humana/
