Alívio e não deflação nos preços dos alimentos – para não comer cru ou fervendo

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A inflação de alimentos reforçou o aumento nos níveis de insegurança alimentar, contribuindo para a diminuição da quantidade e da qualidade adquirida de comida

José Giacomo Baccarin no Le Monde DIplomatique Brasil | 10/08/2023

Está havendo um certo alvoroço na mídia e opinião pública com o fato dos preços dos alimentos no Brasil terem subido menos que o conjunto dos preços ao consumidor no primeiro semestre de 2023. Boa notícia, sem dúvida – em especial para os mais pobres, que dispendem maior parcela de suas rendas na compra de comida –, mas que exige reflexões adicionais sobre a natureza e a duração de tal acontecimento. 

Tem-se definido inflação de alimentos como aumento real e generalizado dos preços de serviços e produtos destinados à alimentação por um período relativamente longo. A consideração do intervalo de tempo é importante, dado que previne que flutuações momentâneas típicas de produtos agrícolas e alimentos derivados interfiram nos resultados de pesquisas.  

A inflação de alimentos ficou bem caracterizada no Brasil entre 2007 e 2022, quando o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) se elevou em 126%. Por sua vez, o Índice de Preços de Alimentos e Bebidas (IPAB), um dos nove grupos componentes do IPCA, cresceu 214%, 88 pontos percentuais a mais. Dos 16 anos considerados, apenas em três o IPAB foi menor que o IPCA, em 2009, 2017 e 2021. 

Nos primeiros seis meses de 2023, o IPCA foi de 2,9% e o IPAB, de apenas 1%. Considerando os subgrupos de alimentação e bebida, o Índice de Preços da Alimentação no Domicílio (IPAD) praticamente ficou estagnado, com aumento de 0,1%, e o Índice de Preços da Alimentação Fora do Domicílio (IPAF) cresceu 3,4%. Mais do que pressões em seus custos, é provável que o atual encarecimento relativo da alimentação fora de domicílio esteja relacionado à recuperação de demanda em bares, lanchonetes e restaurantes, deprimida nos anos da pandemia da Covid-19, entre 2020 e 2022. Neste período, o IPAD cresceu 15% ao ano, mais do que o dobro dos 7% ao ano do IPAF. 

Tratemos com mais atenção os gastos com alimentação no domicílio, que representam próximo a 70% dos gastos com alimentação e bebidas. Dos seis meses iniciais de 2023, o IPAD subiu em dois, janeiro e abril, ficou praticamente estagnado em dois, fevereiro e maio, e caiu em outros dois, março e junho. A queda neste mês, de 1,1%, chamou muito atenção e o termo deflação de alimentos passou a temperar vários textos midiáticos, além de trazer expectativas favoráveis às pessoas, de melhoria na quantidade e qualidade consumidas de comida. 

Ao levar em conta a definição acima de inflação de alimentos, devemos dizer que a diminuição dos preços ainda não se caracteriza como deflação, mas sim um alívio momentâneo. Ele pode ter continuidade ou não, dependendo das condições internacionais, complementadas por ações específicas no campo das políticas públicas. 

Ao contrário do verificado nas últimas três décadas do século XX e até 2006, os preços dos alimentos se encareceram relativamente no Brasil, após 2007, por conta do aumento dos preços de suas matérias primas agrícolas. As pressões maiores não vieram da indústria alimentícia ou do comércio, mas dos mercados agrícolas. De 1990 a 2019, o Brasil triplicou sua participação relativa nas exportações agrícolas mundiais, fazendo com que o aumento real de seus preços internacionais, verificado desde 2001, tenha influenciado mais fortemente os preços internos e dos alimentos derivados. Entre 2007 e 2019, o IPCA variou 103,5% e o IPAB, 155,7%, com médias anuais de 8% e 12%, respectivamente. 

É bom que se diga que o movimento cambial serviu, parcialmente, de contraponto às variações dos preços internacionais agrícolas. Quando estes se elevaram, de forma expressiva, até 2011, a moeda brasileira se valorizou, pressionando menos os preços internos. Entre 2011 e 2019, quando os preços internacionais mantiveram patamar mais baixo que o de 2011, sem voltar, contudo, aos valores do início do século, tendeu a ocorrer desvalorização da moeda nacional, pressionando os preços internos para cima. Não aprofundaremos esta discussão, mas é possível que isto não seja uma mera coincidência, em decorrência da grande participação do agronegócio no saldo comercial total brasileiro. 

A inflação de alimentos ganhou intensidade no Brasil nos anos da pandemia, entre 2020 e 2022, com o IPCA se elevando em 21,7% e o IPAB, 37,6%, com médias anuais respectivas de 7,2% e 12,5%. Nesse período, houve problemas na distribuição de insumos e produtos agrícolas, reforçados por movimentos especulativos de grandes empresas do comércio mundial. Como exemplo pode ser citado o ocorrido na cadeia da soja, com o preço de seu principal produto ao consumidor no Brasil, o óleo refinado de soja, subindo em 121%, em apenas três anos, refletindo o ocorrido no comércio internacional da oleaginosa. 

Esse momento foi seguido por outro mais ameno, com dois movimentos contribuindo para a redução real dos preços dos alimentos. Depois de atingir o maior valor de sua história, em março de 2022, o Índice de Preços de Alimentos da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) caiu 23,4% até junho de 2023. Ao mesmo tempo, até porque a confiança internacional no Brasil se elevou, a moeda nacional tem apresentado trajetória de valorização em 2023. Diferentemente do observado anteriormente, as mudanças recentes nos preços internacionais e no câmbio estão convergindo em favor do consumidor nacional. 

Cadeias agroalimentares

Dando um passo adiante, julgamos procedente fazer análises mais específicas para cadeias agroalimentares, que representam 81% dos gastos com alimentação no domicílio. Onze delas têm exportação ou importação correspondente a mais de 10% da produção nacional, as chamadas comercializáveis: avicultura de corte, bovinocultura de corte, café, cana-de-açúcar, laranja, milho, soja, cacau, cebola e trigo – estas três últimas com saldo comercial negativo, ao contrário das outras oito. De 2007 a 2019, a elevação média dos preços de seus alimentos derivados, igual a 149%, foi menor que a das medianamente comercializáveis, de 157,5%, e menor ainda que a das não comercializáveis, que alcançou 198%. No segundo grupo estão arroz, feijão, batata e bovinocultura de leite e, no terceiro, tomate, avicultura de postura, banana e mandioca. 

Foto: nrd/Unsplash

Consideramos um conceito simples de disponibilidade interna (soma da produção nacional com a importação e subtração da exportação), desconsiderando perdas e variação de estoques. Em termos per capita, nas comercializáveis houve predomínio daquelas em que a disponibilidade aumentou, em especial nas exportáveis. Nos outros dois grupos, apenas na bovinocultura de leite e na avicultura de postura ocorreu aumento da disponibilidade interna per capita.  

A permanência de preços externos em nível alto influenciou diretamente os preços internos dos produtos das cadeias com alta exportação ou importação e também estimulou a produção nacional dos exportáveis, de tal forma que, ao longo do tempo, sua disponibilidade interna tendeu a crescer. Isto contraria, até certo ponto, o senso comum que associa aumento de exportação ao desabastecimento interno. Dentro de determinada cadeia, esta associação seria correta em determinada safra, mas não no longo prazo, em que é possível pelo aumento da produção, produtividade e competividade externa, elevar, concomitantemente, saldo comercial e disponibilidade interna. 

Contudo, não se devem desprezar os efeitos indiretos sobre as cadeias dos não comercializáveis. O maior dinamismo das exportáveis tende a fazer com que maior percentual da área agrícola seja destinada ao seu cultivo, bem como atrair mais intensamente os investimentos e gastos correntes dos agricultores, podendo restringir a produção das não comercializáveis e, em consequência, resultar em elevação do preço ao consumidor. 

Além do mais, pelo lado da demanda, aumento de preço de comercializável pode redirecionar parte de seu consumo para um produto substituto, eventualmente não comercializável. Isto parece ter se dado no Brasil, recentemente, entre 2007 e 2019, com a elevação do preço da carne bovina, de 281%, contribuindo para elevação do consumo de ovo de galinha, bem como de seu preço, em 216%, ambas bem acima do IPAB do período. 

Em termos da contribuição para o IPAD, os produtos das comercializáveis alcançaram valor de 59%, entre 2007 e 2019. Os destaques foram a bovinocultura de corte, com 29%, e o trigo, com 13,5%. Em seguida, vieram a avicultura de corte, com 5%, e a suinocultura, com 3%. As demais cadeias tiveram contribuição para o IPAD abaixo de 2,5%. As maiores contribuições da bovinocultura de corte e trigo se associaram a grande participação de seus produtos nos gastos dos consumidores, de 15% e 16,5%, respectivamente. Além disso, na bovinocultura de corte, como visto acima, o aumento de preços foi muito alto. Ficou o sentimento popular de que a carne de boi foi a grande vilã da inflação de alimentos até 2019. 

Entre os medianamente comercializáveis, a maior contribuição para o IPAD veio da bovinocultura de leite, não porque seus preços tenham aumentado muito, ficando na casa dos 126%, mas pela alta participação dos lácteos nos gastos do consumidor. Os maiores aumentos ocorreram no feijão, de 196%, e na batata, de 222%, enquanto o arroz registrava uma das menores elevações de preços de todas as cadeias, de 87%. No total, este agrupamento contribuiu com 18,5% para o IPAD.  

Os não comercializáveis tiveram a menor participação dos três agrupamentos no IPAD, de 7%, em linha com sua pequena participação nos gastos dos consumidores. Em três delas, o aumento de preços de seus produtos foi superior ao IPAB, banana, avicultura de postura e mandioca e no tomate ficou entre o IPCA e o IPAD. 

Aumento da insegurança alimentar 

Outra característica da inflação de alimentos no Brasil é que os produtos in natura ou minimamente processados tiveram seus preços se elevando com maior intensidade do que os processados ou ultraprocessados. Ou seja, houve estímulo para trocar o consumo de produtos de melhor pelos de pior qualidade nutricional. As últimas edições da POF (Pesquisa de Orçamento Familiar), de 2008/09 e 2017/18, confirmam esta troca, com a participação relativa, em Quilocaloria per capita, dos in natura e minimamente processados reduzindo na cesta de consumo domiciliar de alimentos da população. 

As pesquisas do IBGE, da FAO e da Rede PENSAN, unanimemente, têm apontado que os índices de insegurança alimentar, depois de atingir um mínimo em 2014, passaram a aumentar, fato agravado, mas não exclusivo do período pandêmico. Vários fatores contribuíram para isto, provavelmente, com predominância da queda da renda média dos brasileiros. Se não foi decisiva, pelo menos a inflação de alimentos reforçou tal fato, contribuindo para a diminuição da quantidade e da qualidade adquirida de comida. 

Ações políticas para o futuro 

Olhando para o futuro, pode-se supor que, como os preços internacionais ainda não voltaram aos níveis pré-pandêmicos e é provável que a valorização do Real continue se manifestando, os preços dos alimentos, nos próximos meses, continuem puxando para baixo o IPCA. Mas não esqueçamos que uma oferta mais favorável de alimentos pode estar sendo comprometida com as dificuldades de agirmos em favor da redução dos danos ambientais que provocamos, inclusive na agricultura brasileira.  

Pelos seus efeitos sociais benéficos, muitos torcem para que a queda nos preços reais da alimentação continue ocorrendo nos próximos semestres. Mesmo porque a queda recente, do primeiro semestre de 2023, ainda não comprometeu, seriamente e no geral, a renda da agricultura brasileira. Haveria gordura a queimar, especialmente entre grandes agricultores e agroindústrias. 

Mas apenas torcida não basta. São necessárias posições e ações políticas. A mais geral, é que a Nação Brasileira precisa resolver uma grande contradição, a de alguns de seus setores se vangloriarem do sucesso econômico do agronegócio, enquanto parcela significativa da população convive com insegurança alimentar, com muitos literalmente passando fome. Aquele sucesso e sua imensa renda gerada poderiam conviver, ainda que não naturalmente ou sob as forças exclusivas do mercado, com melhorias significativas no campo alimentar dos brasileiros. Aliás, foi o que ocorreu entre 2003 e 2014, em que também fomos capazes de reduzir o nível de desmatamento na Amazônia. 

Mais especificamente, sugerimos que atenção especial seja dada àquelas cadeias cujos alimentos ocupam papel muito significativo nos gastos dos consumidores, como as carnes (em especial a bovina), o trigo e o leite. Nas carnes e em outras cadeias com grande exportação há de pensar em intervenções públicas, tributária e cambial, em momentos em que seus preços externos disparam, como foi o caso da soja no período pandêmico. O óleo de soja e a margarina não comprometem muito os gastos dos consumidores, mas não podemos esquecer que da soja e do milho vêm os principais componentes das rações animais, usadas na avicultura e suinocultura brasileiras. 

Adicionando uma necessária pitada nutricional, as pesquisas de gastos domiciliar têm mostrado queda no consumo per capita de arroz, feijão e farinha de mandioca, um baixo consumo de lácteos e muito baixo de frutas e verduras e legumes. Sem se esquecer da questão do acesso, é possível pensar em ações públicas que estimulem a produção nacional deste tipo de produto. Talvez isto ajudasse a trazer de volta às mesas dos brasileiros nosso tradicional (com risco de esquecimento) arroz com feijão, muito bem avaliado no campo da nutrição, em especial se acompanhado de proteínas animais e frutas, legumes e verduras. 

José Giacomo Baccarin é professor de Economia Rural na UNESP, campus de Jaboticabal (SP) e membro do Instituto Fome Zero www.ifz.org.br 

Agradecimento: 

Muitas das informações aqui transmitidas foram obtidas no desenvolvimento de Projeto de Pesquisa, entre 2019 e 2023, financiada pelo Ministério da Saúde, com a interveniência do CNPq. Nossos agradecimentos. 

Principais Referências: 

FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura). Índice de precios de los alimentos de la FAO. Disponível em: https://www.fao.org/worldfoodsituation/ foodpricesindex/en/. Acesso em 20 de julho de 2023. 

IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Índice de Preços ao Consumidor Amplo. Disponível em https://sidra.ibge.gov.br/home/ipca/brasil . Acesso em 20 de julho de 2023.

Publicado orginalmente no Le Monde Diplomatique Brasil
https://diplomatique.org.br/alivio-e-nao-deflacao-nos-precos-dos-alimentos-para-nao-comer-cru-ou-fervendo