Livro é organizado por Maycon Noremberg Schubert, Jeferson Tonin e Sergio Schneider
GPAD UFRGS | 03/2023
Dois mantras atuais, “você é o que você come” e “o que você come influencia a mudança climática”, estão reposicionando o debate político e acadêmico sobre agricultura, meio ambiente e saúde pública. As dietas alimentares e o comportamento dos consumidores, assim como a forma de produzir e organizar os sistemas de abastecimento, estão no centro dos debates sobre a chamada “nova questão alimentar” do século XXI. A velha questão alimentar se resumia ao paradoxo malthusiano, expresso no postulado acerca do descompasso entre o crescimento da população e a produção de alimentos.
Desde 2015, a partir do Acordo de Paris e do estabelecimento da Agenda 2030, conjugados na chamada Agenda dos Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS), a alimentação vem ganhando ainda mais destaque, sendo foco em ao menos 6 dos 17 ODSs elencados. Talvez não seja exagerado afirmar que essa seja a agenda mais progressista para a humanidade, na atual quadra da história, porque é capaz de enfrentar, de forma articulada, os problemas ambientais e sociais advindos das mudanças climáticas nesse século XXI.
Na esteira desta discussão, inúmeros periódicos vêm discutindo questões que conectem temas alimentares aos problemas envolvendo saúde e desigualdades sociais. No que diz respeito à saúde, o tema da obesidade é o mais sensível, uma vez que quase 15 % da população mundial já é obesa, e, em alguns países,
esse índice já passa dos 40 %, como é o caso dos Estados Unidos da América (EUA). A alimentação também tem estreita relação com a discussão sobre desigualdades sociais e, portanto, sobre o acesso à alimentação adequada e saudável. Sobre isso, basta dizer que a situação é muito difícil para um crescente número de pessoas, seja devido ao fenômeno chamado de desertos alimentares (ausência e dificuldade de acesso aos alimentos de alta qualidade nutricional) ou pântanos alimentares (excesso de alimentos de baixa qualidade nutricional).
O sistema alimentar global apoia-se largamente no uso exagerado de insumos e pesticidas que contaminam a base natural da produção, assim como os próprios alimentos que consumimos; além de gastar uma imensa quantidade de energia no transporte e abastecimento, que resulta em balanço energético negativo do sistema. A produção de alimentos gera tanta poluição de gases de efeito estufa que, no ritmo atual, mesmo que as nações reduzissem as emissões não alimentares a zero, ainda não seriam capazes de limitar o aumento da temperatura a 1,5 °C – a meta climática do Acordo de Paris, de 2015. Uma grande proporção das emissões do sistema alimentar – 30-50 %, de acordo com algumas estimativas – vem da cadeia de suprimentos da pecuária. O problema é que o atual sistema alimentar é falho, perdulário e altamente impactante sobre os recursos naturais. Sem que alterações substanciais e estruturais sejam feitas, em poucos anos o sistema alimentar global esgotará os recursos naturais, que são a base da produção alimentar.
A forma como se produz, se beneficia, se transporta e se consome alimentos impacta o solo, a água e a biodiversidade e, apesar disso, não tem sido capaz de gerar mais segurança alimentar para a humanidade. Segundo relatório recente da Food and Agriculture Organization (FAO, 2021), estima-se que entre 720 e 811 milhões de pessoas no mundo passaram fome em 2020. A obesidade adulta continua a aumentar, com a prevalência aumentando de 11,7 % em 2012 para 13,1 % em 2016. O alto custo das dietas, aliado à persistente desigualdade de renda, fazem com que cerca de três bilhões de pessoas não consigam se alimentar de forma saudável.
O recente relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, 2022) mostra que a agricultura traz efeitos diretos sobre a biodiversidade, o clima e suas mudanças. A mensagem do relatório recém-lançado é clara: “a maneira como produzimos nossos alimentos importa, e as escolhas alimentares podem ajudar a reduzir as emissões e a pressão sobre a Terra”. Os dados do IPCC apontam que as emissões foram maiores na última década do que em qualquer outro momento da história da humanidade. O desafio é estrutural e envolverá a participação dos mais diversos setores, uma vez que o nosso modo de vida é o principal responsável pelas mudanças climáticas. E um dos aspectos que precisará ser transformado é a cadeia de produção, transporte, distribuição e consumo de alimentos. Em seu capítulo 5, a publicação do IPCC (2022) traz centenas de evidências sobre a correlação entre mudanças climáticas e a produção de alimentos, que deverão ter impactos desiguais segundo regiões e grupos populacionais que historicamente foram impactados pela baixa produção e acesso a alimentos, tal como os países da África Subsaariana.
Em 2019, a EAT–Lancet Commission on Food, Planet, Health, um consórcio de nutricionistas, ecologistas e diversos especialistas de 16 países, divulgou um relatório que pedia uma ampla mudança nas dietas, sugerindo uma urgente aproximação entre a nutrição e o meio ambiente. Segundo o londrino e integrante da Comissão, professor Tim Lang, as mudanças nas dietas poderiam salvar a vida de cerca de 11 milhões de pessoas todos os anos.
Este quadro desafiador pode, deve e precisa ser mudado. As saídas são variadas e exigem ações em distintos níveis e precisam envolver diferentes atores. Neste cenário, as atitudes individuais em relação ao ato de comer são de suma importância para mudar a forma como nos alimentamos. As opções e as possibilidades de tomar decisões sobre o que, quando e onde comer estão confinadas à esfera das individualidades, das práticas individuais, mas nem por isso deixam de ter um sentido mais amplo, que afeta a sociedade, o meio ambiente e o regime climático.
Ademais, é necessário mencionar que há novas formas de engajamento social em torno das pautas alimentares, configurando o que alguns autores recentemente vêm caracterizando como Ativismo Alimentar. Tais movimentos passam pelo Veganismo, Climaterianismo, Flexitarianismo, Consumer Supported Agriculture, Advocace, Accountability etc. A título de exemplo, a nova geração Millennials, com suas aspirações e dificuldades, desempenha um papel central nesses processos, carregando sua diversidade cultural, de gênero e política. Estas tendências colocam desafios às novas formas de relação entre produção e consumo – agricultura urbana, agroecologia, saúde, mobilidade social e urbana, trabalho etc. Por outro lado, novos mercados emergem nesses contextos, especialmente de flexibilização completa nos sistemas de produção dos menus – com as chamadas Dark Kitchens – e a expansão do delivery – iFood, Uber Eats, Just Eat, GrubHub, Delivery Hero etc. – em consonância com o aumento de gastos com alimentação fora do ambiente doméstico, cujos valores em alguns países e classes socais correspondem a mais de 50 % dos gastos com alimentação das famílias.
Neste contexto, os alimentos e a alimentação deixaram de ser apenas matérias-primas de origem vegetal e animal para nutrir as pessoas. A comida, os hábitos alimentares e o próprio ato de comer se tornaram vetores de sociabilidade e fonte de distinção e contestação social. O que você come, quando faz as refeições ou a ingestão de comida, com quem e onde se dá este ato social passou a ser um modo pelo qual os indivíduos e seus coletivos demarcam suas diferenças uns
com os outros, tanto para se juntar ao mesmo grupo ou tribo como para rejeitar
ou até estigmatizar “os outros”.
Finalmente, os temas da segurança alimentar e nutricional, bem como de reconexão alimentar, evocam a necessidade de repensar as atuais formas de abastecimento alimentar, desperdício, qualidades e mercados alimentares. Alinhado a essas questões, o debate sobre políticas alimentares e democracia tem sido essencial na necessidade apontada por alguns autores de repensar os sistemas de Governança Alimentar, em diferentes escalas, contextos e estratégias. De fato, todas essas dinâmicas oferecem oportunidades para pensar novos problemas sociológicos do campo da Sociologia da Alimentação e do Comer.
Nessa acepção, o presente livro tem por base os trabalhos apresentados e discutidos no II Workshop sobre Estratégias Alimentares e de Abastecimento, que foi realizado em 14 e 15 de outubro de 2019, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Os assuntos desenvolvidos nos painéis principais do evento remontam ao que se tem de mais atual em termos de estudos empíricos e teóricos no campo da Sociologia da Alimentação e do Comer no Brasil e em outros países, contando, inclusive, com a participação de painelistas internacionais de países como Espanha e Estados Unidos.
O objetivo principal desta obra é refletir sobre os principais temas e debates em torno da alimentação contemporânea, com foco nos desafios teóricos e conceituais que o campo da Sociologia da Alimentação e do Comer apresentam, além de apresentar formas e métodos que possibilitem compreender, da forma mais ampla possível, os novos fenômenos sociais em torno da alimentação, bem como instrumentalizar políticas alimentares com resultados mais efetivos frente
aos desafios que se avizinham.
Espera-se que a publicação de um material que sintetiza as abordagens e as pesquisas mais recentes em torno dos temas alimentares contribua significativamente com um emergente campo de estudos, que recentemente vem se expandindo no Brasil. O sucesso da publicação de um livro com contribuições
importantes do primeiro workshop, em 2016 – Produção, consumo e abastecimento de alimentos, organizado por Cruz et al. –, demonstrou a importância de referências para as áreas das Ciências Humanas, da Saúde e Ambientais; para os temas da alimentação, da comida e do comer; e para o campo da Sociologia
da Alimentação e da Sociologia do Comer. No entanto, novas estudos são demandados, sobretudo em função da complexidade do tema e do surgimento de novas condicionantes.
Tendo em vista este cenário, a presente obra se propõe a contribuir de duas maneiras. Primeiramente, um conjunto de 8 capítulos mobilizam diferentes vertentes teóricas e recursos metodológicos para analisar as dinâmicas emergentes da alimentação contemporânea em âmbito nacional e internacional. A segunda
parte do livro, por seu turno, reúne oito relatos de caso que dialogam com as transformações em curso nos sistemas alimentares contemporâneos.
Maycon Noremberg Schubert
Jeferson Tonin
Sergio Schneider
Clique aqui e Leia/Baixe o livro “Desafios e tendências da alimentação contemporânea“
Disponível também no Lume/UFRGS